Permuto livros com Manuel Galvez, Ingenieros, Benito Linch, Hugo Wast, Stanchina, Quiroga, Marcelo Perez, Chiapari, e muitos outros. Aparecem em jornais e revistas do Prata, artigos de crítica a meu respeito.

Páginas de livros com dedicatórias aos amigos (o autor tinha por costume colar fotografias nestas páginas).

Terei sido, para Oscar Mendes, um vanguardeiro humilde desses cavaleiros de prol, com minhas esporas de metal pobre, mas abrindo-lhes os caminhos dos temas regionalistas em meus romances SENHORA DE ENGENHO, e O VIGIA DA CASA GRANDE.

"Ao meu muito querido filhinho Hilton para que, mais tarde, homem feito, saiba cultuar o que de civismo, nobreza e coração há neste livro, sem outra maior valia. Seu pai, Mario Sette. Janeiro 1914, Olinda"

Quantas histórias nesses volumes! Em quase todos eles, há entre suas páginas uma efeméride lembrada por um papel de folhinha, um “santinho” de registros religiosos, um bilhete em caligrafia ainda garatujada de um filho...

Memórias Íntimas

Mário Sette

Oferecemos três excertos de MEMÓRIAS ÍNTIMAS - CAMINHOS DE UM CORAÇÃO em que Mário Sette expressa satisfação pelo reconhecimento manifesto de sua obra literária e o carinho e amizade pelos seus livros, prenunciando o futuro deles.

Ainda a revista do Brasil

Para mim que aparecera com dois livros nas letras nacionais, mas, morando na província, foi um espanto aquele convite de Monteiro Lobato, para ser o representante em Pernambuco com o titulo de Diretor de sua "Revista do Brasil", tão em evidência na época. O mensário do autor de Urupês fazia ruído no país e suas páginas constituíam uma consagração literária. Eu já tivera a surpresa de ser ali escolhido com alguns trabalhos e, agora, a honra do convite duplicava de valor.
Foi através da "Revista do Brasil" que vim a fazer excelentes amizades literárias: Godofredo Rangel, Leo Vaz, Paulo Setubal, Veiga Miranda, Plínio Barreto... Sem falar em Monteiro Lobato de quem muito me aproximei e que somente vim a conhecer pessoalmente quando estava em Maceió e ele apareceu por lá curioso pelo petróleo de Riacho Doce.
Tempos em que Paulo Setubal publicava “O Alma Cabocla”, Leo Vaz lançava “O Professora Jeremias”, Veiga Miranda divulgava o seu romance “Mau Olhado”, e Monteiro Lobato, já célebre com “O Urupês”, dava a luz a “Cidades Mortas e Negrinha”.
Com pouco, ele se tornava editor e alcançou um fecundo período bibliográfico a sua empresa publicitária. O meu SENHORA DE ENGENHO ali ressurgia em sua 3ª edição, numa coleção popular. Depois apareciam o QUEM VÊ CARA e O PALANQUIM DOURADO.
Ainda não é tudo para minha vaidade de escritor novato. Certo dia, recebi uma carta firmada pelo intelectual argentino, Benjamim Garay. Vivia em São Paulo e voltara-se à grande obra de aproximação cultural entre brasileiros e argentinos. Pedia-me licença para traduzir alguns contos meus a fim de publicá-los em Buenos Aires. E comunicava-me ir me a por em contato com vários homens de letras de seu País, o que de fato fez.
Saem, realmente, na capital portenha as minhas novelas RASTRO DE SANGUE, OUTROS OLHOS e JOÃO INÁCIO, além de muitos outros contos. Permuto livros com Manuel Galvez, Ingenieros, Benito Linch, Hugo Wast, Stanchina, Quiroga, Marcelo Perez, Chiapari, e muitos outros. Aparecem em jornais e revistas do Prata, artigos de crítica a meu respeito. Publicam meu retrato. Era uma evidencia estimuladora para um escritor que mal surgira no cenário das letras brasileiras.
Tudo isso se devia a "Revista do Brasil".
Hoje, no meu ocaso, relembro com satisfação e desvanecimento, essas expressões de carinho e de benevolência vindas, também, fora de minha terra.

Justiça em vida (27 de junho de 1949)

Que a verdadeira justiça só se faz após a morte daquele que é julgado e a uma distância tal que os juízes pertençam a gerações diferentes, sabe-se de sobejo. Tem-se assim um clima de isenção, sem eiva de afetos, de parcialidade de favoritismo ou de antipatias.
Há, porém, irreprimível satisfação quando se nos depara uma justiça desse molde ainda a tempo de podermos testemunhar. Juízo espontâneo, equilibrado, frio, partindo de quem tem credenciais de cultura e de critério para emitir-lhe, sem nenhum constrangimento e nenhuma dependência.
Foi essa a surpresa que tivemos ontem ao ler em a "Folha da Manhã" desta cidade, o artigo "Um Precursor", da pena do ensaísta e crítico Oscar Mendes que, embora nascido em Pernambuco, vive faz longos anos em Belo Horizonte e a quem não conheço pessoalmente. Nesse trabalho, ele me aponta como precursor da chamada "literatura nordestina" que já nos deu as esporas de ouro de José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Raquel de Queiroz, Graciliano Ramos, Jorge Amado... Terei sido, para Oscar Mendes, um vanguardeiro humilde desses cavaleiros de prol, com minhas esporas de metal pobre, mas abrindo-lhes os caminhos dos temas regionalistas em meus romances SENHORA DE ENGENHO, e O VIGIA DA CASA GRANDE. Neles, a minha pena "romântica" terá pintado paisagens, costumes e tipos, com "verismo" iniciando em 1920 uma nova fase do romance nacional, que ensejaria o grito de Tristão de Ataíde: "Romancistas ao Norte".
Sinto, sem imodéstia, uma manifestação de justiça nesse conceito de Oscar Mendes. Como o terá tido, também Herman Lima ao me emprestar mérito de precursor na maneira pitoresca de evocar o nosso passado doméstico no MAXAMBOMBAS E MARACATUS e no ARRUAR. Dentro de um julgamento sereno, serei digno desse duplo papel de precursor, por desbotado ele tenha sido. Aliás, nunca ambicionei ser mais do que sou, a este passo da minha vida. Contento-me com o meu secundário lugar ao sol, mas faço questão dele, porque, di-lo ainda Oscar Mendes, o conquistei por mim próprio, numa época em que não existia ainda o que hoje se define por "publicidade". Em meu favor nunca tive o apadrinhamento de nenhum crítico, nem o alarde de imprensa camarada, nem sequer os votos de qualquer igrejinha. Realmente SENHORA DE ENGENHO, por exemplo, teve as suas duas primeiras edições pagas de meu bolso e não contou com sistema de distribuição, nem qualquer ajuda de nome ou de posição - pobre de mim, então, praticante do Correio... O mesmo aconteceria, em parte, com O VIGIA DA CASA GRANDE, que embora editado pelo Lelo, no Porto, tivera uma circulação menor no Brasil, ficando quase desconhecido, posto fosse, pondera Oscar Mendes, obra mais bem observada no que diz respeito à vida de trabalho dos engenhos, focalizando-os nela até aspectos que hoje chamaríamos de "sociais".
Nos arroubos da mocidade, podemos sonhar e apreciar os elogios fáceis e exagerados. Na velhice, porém, queremos compreensão de nossa obra. Almejamos crítica e não panegírico, nem tão pouco, derrotismo. O artigo de Oscar Mendes satisfez-nos por esse prisma de imparcialidade em julgar, em nos dar o que de fato merecemos, numa recompensa ao que fizemos, sem ostentação ou presunções numa longa caminhada literária sem esconder o metal pobre de nossas esporas...

Meus livros...

Eu amo a meus livros, como a velhos amigos, como a companheiros de minha vida. E, na verdade, eles representam várias etapas de minha existência, nas datas em que os adquiri, em que mos ofertaram, em que vieram morar comigo. Há os que comprei quando apenas me casara, há os que me recordam o nascimento dos filhos, os ensaios literários, a saída de meu primeiro livro, o contato com confrades brasileiros e estrangeiros, os dias de amarguras e de íntima felicidade, enfim todo o meu viver. Quantos me evocam as épocas em que os li! Os momentos exatos em que lhes penetrei nas páginas em leituras e releituras, registrando-os em notas marginais. Uns serviram-me de companhia em viagens ao interior, temporadas em Caruaru, saudades dos filhos em ausências no Sul, preocupações de saúde em minhas crises de depressão nervosa. Quantas histórias nesses volumes! Em quase todos eles, há entre suas páginas uma efeméride lembrada por um papel de folhinha, um “santinho” de registros religiosos, um bilhete em caligrafia ainda garatujada de um filho... Há um “Pecherd’Islande”, de Loti, que relia na noite em que Hílcia nasceu... Há um “Toutinegrado Moinho” que meu pai lia quando morreu... Livros queridos. Alguns mesmo valiosíssimos e raros, hoje. Meus amigos, meus companheiros.
Ponho-lhes sempre numa das primeiras páginas uma dedicatória a meus filhos, como herança preciosa. Hoje penso num futuro mais distante. Eles serão, também, de meus netos. De todos eles. A sua biblioteca comum, da qual não devem se desfazer nunca. Cada um, mais tarde, dentro de suas preferências procura-los-á. Le-los-á. E, por ventura, ama-los-á tanto quanto o Dindinho os amou. Passarão seus olhos por essas mesmas páginas cheias de beleza, de patriotismo, de saber, por onde os olhos do avô andaram tantas vezes ávidos de conhecimento, de estética, de brasileirismo... E sentir-se-ão felizes como muito feliz tenho sido.
Meus livros... Os livros de meus netos. Que eles possam ser no futuro, um elo de afeto e de camaradagem a prendê-los e a uni-los num exemplo de cordialidade e de inteligência. Que todos os cinco de agora e os que ainda venham ao mundo, saibam procurar o cultivo dos espíritos e a harmonia dos corações na BIBLIOTECA DE DINDINHO.

Fonte: Excertos: in, SETTE, Mário. Memórias Íntimas: Caminhos de um coração. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1980.