Primeira edição do livro

 

Bonde de burros em caricatura do início do século XX.

 

Até mesmo quando se afasta da sua crônica, da crônica dele mesmo pelas artes transfigurativas, fica perto, ensina, fixa velhos costumes recifenses de interesse para a história social (...)

 

 

 

4ª edição, 1981

 

Todo o Recife de há 30 anos está ali dentro e nunca mais se extinguirá. (1935)

 

Ilustração de um trem de burros

 

Ticket de passageiro

 

Um escritor dessa argúcia de observação, de amor firme e magistralmente declarado pelos valores do corpo e do espírito do Recife, teria de ser reeditado (...)

 

"A Rua do Hospício do meu tempo" 1902

 

Anúncio de chapéus e confetes para brincar o carnaval.

MAXAMBOMBAS E MARACATUS (1935)

Leonardo Dantas Silva

O meu primeiro contato com MAXAMBOMBAS E MARACATUS, veio através de meu pai, Antônio Machado Gomes da Silva (1894-1966), a quem eu tratava pelo apelido familiar de Tonico. O exemplar, 2ª Edição, 1938, guardado com carinho pelo homem de hoje com os riscos e os traços do menino de ontem, tomou uma bela encadernação e veio a inspirar esta terceira edição.

Foi o primeiro retrato de corpo inteiro do Recife. Um retrato com tintas vivas, uma verdadeira narrativa cinematográfica da vida da cidade nos anos que presenciaram o fim do século XIX e o início do século XX. Uma narrativa que desperta o leitor para uma cidade que ele gostaria de ter nela vivido; um Recife, como o do poeta Manuel Bandeira, ”sem história e nem literatura”... um “Recife brasileiro como a casa do meu avô”...

No Natal de 1980, recebo, das mãos do Professor Hilton Sette, o exemplar que pertenceu ao seu pai e, logo na primeira página, encontro uma anotação que bem define as cores do retrato que tentei descrever: “Este livro não é apenas uma expressão literária, ele é, sobretudo, uma mostra de coração... Mário Sette”.
O volume, em linda encadernação, fora transformado pelo autor num álbum de recortes: programas do Theatro Santa Isabel (1902); anúncios de liquidação de chapéus na Rua do Queimado (Duque de Caxias); horário de partida da “Diligência para Victoria” dos Afogados; Programas do Theatro Santo Antônio; o Theatroscópio (1902); que foi precursor dos nossos cinemas, anunciando “vistas animadas e fixas de Santos Dumont e seu dirigível”; bilhetes do bonde de burros (Companhia Ferro-Carril), que começou a correr em nossas ruas, em 1871, prolongando os seus serviços até 1914; chegadas dos navios da Royal Mail Steam Navigation Packet Company; um recorte de jornal, de outubro de 1873, anuncia “casacos para banhos de mar de Olinda”; horários de bondes elétricos; um convite da Charanga do Recife para a sessão solene de 19 de setembro de 1908; tábua com os horários de chegadas e saídas da maxambomba (primeiro trem urbano da América do Sul, que começou a circular a partir de 1868).... Um Recife, no dizer do próprio autor, que “não quisera fosse ainda o que era, mas que tenho saudades por haver deixado de ser o que foi”.
É este o Recife que o leitor encontrará ao folhear as páginas desta edição: O Recife dos pastoris, dos bondes de burros, dos serenos de casamento, dos tipos de ruas, dos carregadores de piano, das negras da costa, do mês mariano, dos antigos cafés, das esquinas, dos brabos e capoeiras, das bandas de música, das maxambombas, das ruas e pátios de nomes poéticos e sonoros, do primeiro avião, do primeiro automóvel, do primeiro futebol, dos clubes de frevos e maracatus.
- Um olhar no retrovisor, de modo a sentir o passado e entender melhor o presente.

Fonte: Notas do Editor por Leonardo Dantas Silva da reedição de SETTE, Mário. Maxambombas e Maracatus. Coleção Recife. Vol.XIX. Recife: Prefeitura da cidade do Recife, 1981.

Mário Sette e o Recife

Mauro Motta

Em artigo deste novembro, no Diário, de louvor a conjunção da "atividade de erudito em relação ao Recife, com a Jornalista militante", do jovem historiógrafo Leonardo Dantas Silva, editor desta Coleção Recife, agora no 15°, volume, " Gilberto Fryre vê essa conjunção dentro de uma "constante recifense". Certíssimo. Aí estão os exemplos históricos e os contemporâneos desse relacionamento entre jornal, erudição e literatura, ao qual Mário Sette dá realce neste MAXAMBOMBAS E MARACATUS, em ANQUINHAS E BERNARDAS, TERRA PERNAMBUCANA, mais em ARRUAR.

Todas as crônicas componentes desses livros têm o Recife como universo geosocial. E todas ou quase todas foram antes publicadas em jornal sem que isso lhes tenha imposto o caráter circunstancial do jornalismo tomado ao pé da letra. O que contribui para reafirmar que o veículo não determina o gênero. A matéria publicada no jornal pode ser do livro quando tem sustância para ao livro chegar.
O jornalista faz o jornal e o jornal faz 0 jornalista e neste, muitas vezes, 0 escritor.
O que seria hoje, para lembrar autores representativos do Recife oitocentista, do nível de Lopes Gama, 0 Padre Carapuceiro, e de Antônio Pedro de Figueredo, se eles não se tivessem deixado no jornal, discorrendo sobre o que lhes parecia "assuntos do momento", que só no momento iriam ficar?
O primeiro, tido por Sylvio Romero, num erro de proporções daquele de situar Tobias, como poeta, acima de Castro Alves, como apenas um "homem engraçado", era um erudito de primeira ordem, conhecedor dos clássicos, ironista, crítico de costumes genial e mestre na comunicação em nexo antecipado em mais de um século com as diretrizes das modernas técnicas da arte literária.
“A gramática, escreveu, só serviria para escrever sem erros de sintaxe, de concordância e regência (...). Mas que distância não vai de falar e escrever corretamente e falar e escrever bem!” (1)
Ao outro pertencem estas palavras antológicas sobre os valores da imaginação e da criação humana. “A imaginação substitui a verdade absoluta que é sempre acanhada, e sem unidade, pela verdade relativa mais ampla, mais real, e por assim dizer, mais verdadeira, e então os acontecimentos gloriosos com 0 tipo indelével, e definitivo, que lhes convém, são guardados na memória de todos, para serem transmitidos, de geração em geração, à maior admiração da posteridade, e então a história se torna de alguma sorte legendária, faz esquecer crônica, coloca para sempre 0 interesse onde deve estar, faz acerca desses acontecimentos uma narração épica, que será eternamente uma grande lição, faz de cada um desses acontecimentos uma grande figura, que será eternamente um belo exemplo, um modelo sublime. A verdade ideal triunfa da realidade absoluta". (2)
Esta citação nada tem aqui de excesso. Coincide com o processo da linguagem de Mário Sette como se ele a tivesse recebido do fundo do tempo, direta. Obviamente na condição de privilegiado para recebê-la pelos seus dons pessoais de sensibilidade diante da literatura, de saber construí-la sem artifícios ou ardores beletrísticos. De saber construí-la com os sumos e os viços mais puros das palavras simples, quase sempre em magias de colóquios conferentes de sobrevivência aos episódios.
Veja-se e ver, no caso, é o verbo certo – a amostragem, logo no primeiro capitulo deste livro, sobre os antigos pastoris, que funcionavam aos sábados, durante as noites espichadas em madrugadas da Torre, da Encruzilhada, de Beberibe, da Várzea, de Caxangá, de outros arrabaldes recifenses.
Aí existe a ocorrência paralela antes mencionada: 0 triunfo da verdade ideal sobre a realidade absoluta. Absoluta, anote-se, porque a realidade não se perde, acha-se viva em todos os contornos e nuances, no que foi e no que poderia ter sido, mesmo porque o que poderia ter sido e uma forma de ser.
O capítulo opõe-se, sem qualquer intento de oposição, às narrativas duras, tradicionárias, copistas ou copiosas. Abrange o visual, o plástico, o coreográfico, a acústica, o rebuliço da assistência. As palavras saltam do papel, feito mestras, pastoras, dianas, velhos, cordões encarnado e azul, todo o elenco do espetáculo. E têm conduta semelhante quando transferem-se aos demais temas de MAXAMBOMBAS E MARACATUS, naturalmente com as mudanças exigidas pelas novas aplicações: carnaval, lojas, danças procissões, bondes, teatros.
É esse o jeito de Mário Sette, a face de sua composição e de sua permanência em nossa história literária. Com ele, a gente aprende muito sobre a biografia, sobre as intimidades do Recife. Até mesmo quando se afasta da sua crônica, da crônica dele mesmo pelas artes transfigurativas, fica perto, ensina, fixa velhos costumes recifenses de interesse para a história social, à maneira destes anotados em páginas diversas de OS AZEVEDOS DO POÇO, talvez o seu melhor romance:

- Zumba viajava na maxambomba, escolhendo o carro-salão, menos democrático e mais do gosto dos homens de respeito e das senhoras. Entrando, botava a luneta de ouro pendente de um tracelim de seda e punha-se a ler no jornal seções comerciais, inteirando-se da chegada do vapor da Europa.
- Na estação de Ponte d'Uchoa, Joca, impecável sempre no trajo talhado à francesa, e a quem um criado, de farda cinzenta com botões dourados, trazia a bolsa de couro com monograma em destaque e o guarda-chuva de cabo de marfim
- A lembrança atroz de um leque de plumas pretas que lhe arranhava o rosto numa noite do Clube Imperial.
- Ao descobrir o marido festejando, dentro da própria casa-grande, uma mulatinha em serviços de mucama, mandara vender a mulatinha a um senhor de engenho perverso da vizinhança e ela passara a dormir num marquezão do quarto conjugal, ao lado do esposo, mas sem nunca mais lhe ter dado confiança.
- Os Azevedos tiravam as bacorinhas, despiam os fraques, trocando-os pelos paletós de alpaca, que dormiam murchos como morcegos no cabide da coluna.
- Não relaxava os fraques cor-de-rosa, as calças de fantasia, a flor no peito, a cartola cinzenta.
- Monsenhor Ramos, depois de um passeio vagaroso pelo bairro, no seu passo medido, dando a mão a beijar às beatas e crianças, vinha ao ponto da palestra habitual.
- Totônio fora de chambre, com um castiçal na mão, abrir a janela.
- O boleeiro tirou a berlinda da cocheira, atrelou-lhe a parelha de cavalos e vestiu logo a farda azul, com botões dourados.
- Dona Naninha veio de cara pintada, reparou? – Não se dá ao respeito.
- Uma mocinha no balcão dava o que falar, exposta a afoitezas de homem.
- Mamãe ficou furiosa, no Apolo, porque apareceu em cena uma atriz com a saia pelos joelhos.

Um escritor dessa argúcia de observação, de amor firme e magistralmente declarado pelos valores do corpo e do espírito do Recife, teria de ser reeditado, teria de voltar à convivência dos leitores como volta agora através de uma editora que o prestigia e é prestigiada com ele.

(1) In O Carapuceiro, n° 50 – 19.10.1842
(2) In Diário de Pernambuco, 27.06.1857
Fonte: Prefácio por Mauro Mota da reedição in SETTE, Mário. Maxambombas e Maracatus. Coleção Recife. Vol.XIX. Recife: Prefeitura da cidade do Recife, 1981.

MAXAMBOMBAS E MARACATUS (nas ‘orelhas’ da primeira edição)

“MAXAMBOMBAS E MARACATUS me parece o melhor livro de Mário Sette. Páginas cheias de cor e de emoção sobre o ’1900 pernambucano’; sobre esse passado tão próximo de nós que ainda não morreu de todo e por isso mais triste que os outros passados já completamente mortos”.

Gilberto Freyre

“Quantos quadros cheios de colorido, de pitoresco, de vida, há nestas páginas sobre o velho Recife, a sua vida social, as suas tradições, as suas instituições, os seus velhos costumes evanescentes”.

Oliveira Viana

“Todo o Recife de há 30 anos está ali dentro e nunca mais se extinguirá. Lê-lo é esquecer a ação destruidora do tempo e que a mocidade é privilégio dos moços. Li-o devagar, ora voltando à página, ora fechando-a e cerrando os olhos para ver melhor, ora com um sorriso de cumplicidade, ora sentindo bater mais forte o coração”.

Mateus de Albuquerque

“Poder-se-á alegar ter feito Mário Sette, nesse livro, mais obra de história que cronista. Terá então o escritor pernambucano criado um gênero seu – o da História fielmente reproduzida, mas com todo o seu pitoresco – coisa a que não o haviam feito os nossos mestres no assunto”.

Lucilo Varejão

“MAXAMBOMBAS E MARACATUS é um livro que se deve ler e guardar. Há aqui fontes maravilhosas de aspectos.”

Eloy Pontes