Mário Sette foi, como diria Huxley, um “pontifex”, isto é aquele que serve de ponte entre o homem e os acontecimentos fazendo-os permanecer vivos através da palavra escrita, arma poderosa que o tempo não destrói, quando sabiamente emitida.

 

 

Em SENHORA DE ENGENHO, publicado às vésperas da Semana de Arte Moderna, se a linguagem é rebuscada nas descrições, é coloquial nos diálogos, sobretudo quando ele retrata o povo do “mato” vivendo ao redor de Tracunhaém...

 

 

Porto do Recife, 1901

 

 

Mário Sette foi fiel aos dizeres do povo e há um sabor todo especial em sentir viva uma linguagem que o tempo parecia ter consumido.

 

 

Ao fundo, à direita a Alfândega (1901).

 

O romance não é, tão somente, uma estória. São muitas estórias, envolvendo grupos humanos de gerações diferentes, convergindo todos, entretanto, como as pétalas de uma rosa, para um núcleo comum, os Azevedos.

 

 

A Maxambomba de Olinda na estação dos Milagres

 

Nesse Recife de outrora, diz Mário Sette, sem cinema nem futebol, o pastoril era o divertimento do “goto” da gente nova. Havia de tudo no pastoril. Famílias “lordes” e gente de pé-no-chão, “todos democraticamente reunidos para ver as pastoras e não raro o espetáculo terminava num anguzô, com tiros e tabicadas”.

 

 

Ladeira de São Francisco em Olinda (1912).

 

 

Assim, Mário Sette se fez presente em tudo quanto disse respeito a Pernambuco, ao Brasil e ao Mundo.

 

 

Mário Sette – atalaia grandioso dos sentimentos de brasilidade, erigiu com sua obra, um monumento ao que passou, para que permanecesse vivo em todos quantos amaram e amam esta pobre e maravilhosa terra Pernambucana.

Cadeira 18

Estephania Nogueira (Discurso de posse na Academia Pernambucana de Letras, 1985)

(...)

E agora, senhoras e senhores a minha vista se alonga para o ontem e desse ontem, não tão distante ainda, renasce o passado na literatura saborosa e regional de Mário Sette.

Tivesse-o conhecido e lhes traria uma contribuição pessoal do homem como ser de comunicação, do professor de História do Brasil e do humanista, integrado às coisas da sua terra, da sua gente e do seu tempo.

Mário Sette foi, como diria Huxley, um “pontifex”, isto é aquele que serve de ponte entre o homem e os acontecimentos fazendo-os permanecer vivos através da palavra escrita, arma poderosa que o tempo não destrói, quando sabiamente emitida.
De sua vasta bibliografia selecionei, para uma apreciação especial, um livro de crônicas – MAXAMBOMBAS E MARACATUS; dois textos didáticos: BRASIL, MINHA TERRA e TERRA PERNAMBUCANA; e três romances: SENHORA DE ENGENHO, SEU CANDINHO DA FARMÁCIA e OS AZEVEDOS DO POÇO, este, segundo Mauro Mota, o seu melhor romance.
São seis textos que, diversos em sua proposta literária, se completam pelo sentimento telúrico e pela visão do homem que se ajusta aos novos tempos sem perder de vista a sua característica principal – a de ser gente.
Dessa forma o humanista e patriota co-existem em tudo quanto escreveu e recordo aqui as palavras de Visconde de Taunay, no prefácio da 1ª Edição de BRASIL, MINHA TERRA, em 1928. Embora distantes no tempo, elas são, no momento histórico em que vivemos, de absoluta atualidade. Disse ele:

“Neste país imenso e ainda despovoadíssimo, onde os principais núcleos tão pouco se interpenetram ainda na grande maioria dos casos a idéia da maior pátria, da grande pátria se esbate...”

Espicaçado por esse vivo sentimento de pátria, Mário Sette soube transmitir nas crônicas, nos romances e nos textos cívicos, a sua permanente preocupação com o Brasil, a moral e a religião. Não que tenha sido sempre e objetivamente didático, mas a sua fidelidade a si mesmo e aos seus valores transparece em cada um dos seus livros, escritos muitos deles em linguagem tão coloquial que, dentro de pouco tempo será necessário escrever um glossário para que se possa entender e apreciar os dizeres da época.
Em SENHORA DE ENGENHO, publicado às vésperas da Semana de Arte Moderna, se a linguagem é rebuscada nas descrições, é coloquial nos diálogos, sobretudo quando ele retrata o povo do “mato” vivendo ao redor de Tracunhaém e como José de Alencar, ele fala “d’aromas castos de jasmim”, dos “adereços das estrelas” e das “montanhas alcatifadas de relva”.
Romance de época e naturalmente de costumes, SENHORA DE ENGENHO começa por apreciar a vida no Recife e no Rio de Janeiro para fixar-se, por fim, no Engenho Águas Claras e, mais importante do que a estória, onde o tempo comanda a sucessão dos acontecimentos, estão os personagens que, embora planos, são os porta-vozes do autor no que diz respeito aos seus conceitos de valor.
Ingênua e sentimental, a narrativa se desenvolve numa atmosfera que lembra, de certa maneira, o Eça de “A Cidade e as Serras”, explorando como fez o grande escritor português, o contraste entre a vida agitada da cidade grande com seus artificialismos e as suas cavações e a vida simples no engenho, voltada para a terra, para a plantação de cana e para a moenda; para as festas de São João, da Padroeira e do Natal. Tudo com aquele ar de simplicidade que caracteriza o viver com os pés no chão, sentindo o calor do barro vermelho e esmagando torrões de terra nos passeios campos afora.
Já em SEU CANDINHO DA FARMÁCIA, publicado em 1932, Mário Sette cria uma estrutura diferente. A sua linguagem é mais enxuta e a trama envolve aspectos mais sofisticados do que em SENHORA DE ENGENHO. A ação se sobrepõe às descrições e o espaço físico é o Recife. O bairro de São José está inteiro no romance e ressurge vivo com suas “casinhas térreas aconchegadas como aves que vêm dormir num só poleiro”.
Sem fazer concessões, Mário Sette fala de amores menos castos e aborda um tema surpreendente para a época: o efeito da droga no comportamento humano.
Os personagens estão mais bem delineados e Seu Candinho é o anti-herói, capaz de corromper pelo dinheiro e destruir, sem remorsos, os que a ele se opõem.
Diz um amigo meu, paraibano de nascimento e pernambucano de adoção, que andar pelas ruas do Recife é tropeçar, a cada passo, na História e que Mário Sette fez foi fixar os elementos fundamentais da história sócio-linguística do Recife.
História sócio-linguística, digo bem, porque, se em outros autores como Gilberto Freyre, José Antônio Gonçalves de Melo, Vanildo Bezerra Cavalcanti e Flávio Guerra para não citar outros nomes, Recife se desdobra num grande mapa onde o passado e o presente se encontram. Mário Sette foi fiel aos dizeres do povo e há um sabor todo especial em sentir viva uma linguagem que o tempo parecia ter consumido.
OS AZEVEDOS DO POÇO faz lembrar, guardadas as devidas proporções, o escritor americano Willian Faulkner, quando ele estuda a decadência do branco sulista nos Estados Unidos. Aqui, o espaço literário como que se reduz e Mário Sette situa seus personagens no Poço da Panela onde residiam “três irmãos de falada riqueza e sólido conceito, associados na poderosa firma Azevedo Irmãos”.
Se em SENHORA DE ENGENHO o autor narra a vida no “mato” e em SEU CANDINHO DA FARMÁCIA a classe média do bairro de São José está sob o foco de sua atenção em OS AZEVEDOS DO POÇO é o burguês enriquecido quem é o objeto de sua análise. Publicado em 1938, já o Recife se modificara. A Igreja do Corpo Santo, de que tanto nos fala Vanildo Bezerra Cavalcanti, fora derrubada e, diz Mário Sette: “tudo morto, tudo vazio, tudo profanado. Não era um simples bairro antiquado que desaparecia, era também um templo... não apenas um trecho velho da cidade, mas também uma época”.
E, com a época, se vai o seu personagem principal – Zumba – cuja vida de progresso e felicidade começa a desmoronar desde que a filha, casada contra a vontade, foge com o antigo namorado, provocando um escândalo que foi um “prato” para as comadres da vizinhança.
Há, neste livro, pela primeira vez em Mário Sette, um estudo dos contrastes sociais. E, também, pela primeira vez, ele estrutura a sua narrativa numa forma que eu diria em rosácea. O romance não é, tão somente, uma estória. São muitas estórias, envolvendo grupos humanos de gerações diferentes, convergindo todos, entretanto, como as pétalas de uma rosa, para um núcleo comum, os Azevedos.
Nota-se que o autor cresce mais ainda neste romance. Sem abrir mão dos seus conceitos de valor ele vê a sociedade como ela realmente é, e retrata com fidelidade do analista, tanto o crescimento como o declínio e a corrupção do ser social.
Confesso-lhes que relendo Mário Sette, parecia-me caminhar pelas ruas do Recife e, pelos ouvidos, entravam-me os sons, como que gravados em fita magnética e eu já não era o meu eu de hoje, mas o meu eu adolescente, revivendo as conversas de calçada e a ver surgir da esquina próxima, rapazes “gamenhos” de “calça tabique” e de gravata como convinha a filhos de família. E esse foi um reviver mágico, sobretudo pelo que continha de poético e romântico.
Romântico, ele também, Mário Sette disse que o seu livro de crônicas MAXAMBOMBAS E MARACATUS não era apenas uma expressão literária, mas sobretudo, uma mostra de coração. E foi com alegria que registrei a sua reedição,num excelente trabalho gráfico da Prefeitura da Cidade do Recife e em cujo Prefácio Mauro Mota diz: “Com Mário Sette a gente aprende muito sobre a biografia, sobre as intimidades do Recife”.
O que é verdade. Se nos dois últimos romances aqui mencionados o bairro de São José e o Poço da Panela são os cenários onde se desenvolve a ação, em MAXAMBOMBAS E MARACATUS temos a reconstituição do Recife inteiro. O jornalismo anota quase dia por dia os acontecimentos que pouco a pouco modificaram a vida da cidade, apreciando inclusive a moda, quando as saias roçavam o chão e os “rapazes deram em usar, como penteado, uma trunfazinha de cabelo na frente chamada Bendengó”.
Nesse Recife de outrora, diz Mário Sette, sem cinema nem futebol, o pastoril era o divertimento do “goto” da gente nova. Havia de tudo no pastoril. Famílias “lordes” e gente de pé-no-chão, “todos democraticamente reunidos para ver as pastoras e não raro o espetáculo terminava num anguzô, com tiros e tabicadas”.
Todo casamento que se prezasse tinha que ter o seu sereno. E a noiva distribuía com os convidados e muitas vezes com o sereno, cravos do seu bouquet e cada cravo era mordido por ela, para dar sorte.
Falando de teatro, Mário Sette narra o incêndio do Santa Isabel, em 1869, informando que “o fogo era atribuído a um aparelho de luz elétrica, cousa misteriosa e arteira deixado por descuido no camarim da prima-dona”.
E como os recifenses daquela época não passassem sem teatro, começaram a surgir os teatros de subúrbio sem esquecer, pela importância e beleza, o teatro Apolo que o autor julgou, posteriormente, haver desaparecido para sempre.
Assim, como o Recife revive em cada uma de suas crônicas, o espírito de pátria está presente em seus textos cívicos.
Em BRASIL, MINHA TERRA, os fatos históricos são relatados numa linguagem simples e didática e os estudantes das escolas primárias daquele tempo ali encontraram, se bem que de forma fragmentada; os incidentes mais importantes que marcaram as várias fases da vida do Brasil. “A Primeira Missa”, celebrada por Frei Henrique de Coimbra, lá está retratada, inclusive com a ilustração de Victor Meirelles. E a célebre carta de Caminha com a sua frase histórica:

“Esta terra Senhor, é em tudo praia praina, chã e mui formosa. Em tal maneira é graciosa, que querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo”.

Mas não esquece poetas como Gonçalves Dias e compositores como Carlos Gomes. Fala de Independência e chega até o Governo de Epitácio Pessoa e relembra a conferência de paz em Haia quando “em argumentos irresponsáveis... os povos pequenos venceram pela voz desse orador triunfante, delegado do Brasil, Rui Barbosa”.
TERRA PERNAMBUCANA, adotado em escolas públicas e particulares do estado, era texto de leitura obrigatória e nele o autor relembra com um carinho todo especial, diferentes aspectos da História de Pernambuco, berço do sentimento de brasilidade. E em se tratando da importância das mulheres na vida da Capitania de Pernambuco, o autor recorda que quando o seu primeiro donatário, Duarte Coelho, precisou ir à Lisboa, deixou “tomando conta do governo, a esposa Dona Brites de Albuquerque”. Outro fato importante para a nobiliarquia pernambucana é a prisão de Jerônimo de Albuquerque – irmão de Dona Brites – pelos índios Tabajaras. Embora possa parecer um incidente romântico, a História registra que, no momento em que ia ser morto, o prisioneiro branco desperta o interesse da filha do cacique e é por ela libertado. O fato foi importante não apenas para um maior congraçamento entre os Tabajaras e os brancos, mas a genealogia pernambucana que descendem da união de Jerônimo coma índia Arcoverde, descendência onde, com muita satisfação, me incluo.
Progressivamente, acompanhamos com Mário Sette as diferentes lutas de Pernambuco pela independência, fosse na guerra contra os holandeses, tão bem analisada pelo historiador Flávio Guerra, fosse na campanha abolicionista com o Clube do Cupim e, mais recentemente, com a entrada do Brasil na II Grande Guerra. A última edição do seu livro já fala dos “black-outs”, das fortalezas voadoras e da vitoria final dos Aliados em 1945.
Assim, Mário Sette se fez presente em tudo quanto disse respeito a Pernambuco, ao Brasil e ao Mundo.
Por isso a sua obra é imortal e recordo neste momento a palavra inesquecível de Afonso Arinos quando ao escrever o “Burití Perdido” diz: “Atalaia grandioso dos campos e das matas, junto de ti pasce tranqüilo o touro selvagem e as potrancas ligeiras que não conhecem ainda o jugo do homem. Testemunha sobrevivente do drama da conquista, que de majestade e de tristura não exprimes, venerável epônimo dos campos.” E conclui a sua página, sem favor nenhum, antológica, dizendo: “Então talvez, uma alma amante de lendas primevas, uma alma que tenhas movido ao amor e à poesia não permitindo a tua destruição, fará às gerações extintas, como uma página sempre viva de um poema que não foi escrito mas que referve na mente de cada um dos filhos desta terra”.
Assim, Mário Sette – atalaia grandioso dos sentimentos de brasilidade, erigiu com sua obra, um monumento ao que passou, para que permanecesse vivo em todos quantos amaram e amam esta pobre e maravilhosa terra Pernambucana.

Fonte: NOGUEIRA, Estephania. Estephania Nogueira – Cadeira 18 – Discurso de Posse. Academia Pernambucana de Letras. Recife: 1985.