Cadeirinhas de arruar, misto de recato e de ostentação, transitando pela Boa Vista e indo até Fora-de-Portas.

Arruar, deambular, flanar. Verbos cheios de mofo e que não podem mais ser conjugados, na prática, nas grandes cidades brasileiras. Quem em sã consciência vai caminhar pelas ruas do centro, admirando a paisagem ou talvez aproveitando os ares de uma noite de verão?

Cadeirinhas de Arruar

Raimundo Moraes

Nas acepções encontradas no Aurélio para definir o verbo arruar, todas se adequam às pitorescas histórias de Mário Sette, um dos maiores cronistas pernambucanos do século passado. Mas sublinho justamente a quarta definição Aureliana, baseada num texto de Mário: "Hoje, já não se sabe arruar direito. Anda-se, ou melhor, corre-se pelas ruas. Os meios de transporte não favorecem esse prazer dos antigos". (Arruar, p. 9)

Arruar, deambular, flanar. Verbos cheios de mofo e que não podem mais ser conjugados, na prática, nas grandes cidades brasileiras. Quem em sã consciência vai caminhar pelas ruas do centro, admirando a paisagem ou talvez aproveitando os ares de uma noite de verão? Corre-se o risco de fazer um passeio sem volta...

Este ano comemoram-se os 120 anos de nascimento de Mário Sette. Não sei se alguém se lembrou, não sei se está prevista algum tipo de homenagem para aquele que também foi jornalista, pesquisador e professor de História do Brasil na Faculdade de Filosofia do Recife.
Felizmente a Fundação Joaquim Nabuco mantém um excelente arquivo sobre a produção literária do professor. O acervo está aberto ao público e inclui artigos publicados, documentos, correspondência, etc. Um patrimônio importante para o estudo da história do Recife e como registro factual de uma época em que a capital de Pernambuco ia deixando os ares de província e ganhava status de grande cidade.
Ao que tudo indica os livros de Mário não foram mais reeditados. Eu na minha estante tenho o privilégio de conservar duas obras deliciosas de serem lidas: ARRUAR e MAXAMBOMBAS E MARACATUS, ambas heranças da biblioteca paterna. (Gostaria de ter lido Mário Sette: o Retratista da Palavra, de Magdalena Almeida, editado em 2000 pela Fundação de Cultura da Cidade do Recife e que não é mais comercializado nas livrarias. Espero encontrá-lo em algum sebo algum dia).
Tanto em ARRUAR como em MAXAMBOMBAS os textos parecem lápides de um Recife já sepultado pela violência e pela miséria: sem hordas de crianças pedindo esmolas em semáforos, sem praças demarcadas por grades e um Capibaribe que corria sinuoso sem os milhares de esgotos sufocando-lhe a hidro(bio)grafia.
Ideologicamente falando, Mário era descendente e simpatizante da antiga elite dos senhores de engenho. Porém isso não ofusca o seu talento como escritor. Como eu já disse uma vez, os ídolos têm pé-de-barro e ninguém é santinho. A não ser do pau-ôco. Ora, Carlos Drummond de Andrade, simpatizante do PCB, não serviu à ditadura de Vargas, trabalhando no Ministério da Educação? (como desculpa, dizia que aceitou o cargo de chefe de gabinete "por amizade" ao ministro Gustavo Capanema). Nelson Rodrigues apoiou abertamente o golpe de 64 (e por ironia seu filho foi preso em 69). Ezra Pound, uma das figuras mais importantes da literatura ocidental, era fascista e admirava Mussolini.
Assim caminha a humanidade meus caros, e o tapete tem que ser enorme para varrer pra baixo as mazelas de todos.
Retornando a Mário Sette, recordo de uma entrevista que eu fiz, ainda estudante de Jornalismo. A matéria nem lembro pra que jornal era, mas era sobre o Recife antigo. Entrevistei um dos filhos do cronista, Hilton Sette (geógrafo, professor e escritor, falecido na década de 90). A entrevista rendeu uma conversa maravilhosa, além de dois livros seus autografados: O Rapaz da Vila Maria e Apartamento de Cobertura. Posso dizer que o filho de Mário escrevia superbem. Assim como seu pai, foi integrante da Academia Pernambucana de Letras. Mas lamento que seu nome já tenha caído no esquecimento.
Quanto a Mário, talvez sua lembrança perdure ainda por algumas décadas: ele virou nome de rua no bairro de Campo Grande e nome de uma escola em Caruaru.

Fonte: MORAES, Raimundo “Cadeirinhas de Arruar”. www.interpoetica.com Recife: 2006.