1ª edição
Fixada, assim, a época em que se situa a ação do romance, é interessante verificar como o escritor “vê” esses velhos tempos recifenses. E as tintas com que ele nos pinta esse mundo de nossos avós parecem despertar, no leitor de hoje, a estranha sensação de ter sido roubado.
O autor costumava dedicar seus livros aos amigos, como se pode ver no detalhe desta edição.
Casa de Banhos - localizada nos arrecifes em frente ao porto. Construida em 1880 era frequentada pela sociedade recifense para a prática de banho salgado. Em 1920 foi destruída por um incêndio.
Reedição, de 1985
(...) magistral é também a expressão com que o escritor encerra, pela boca de Zumba Azevedo, o seu melancólico comentário sobre a destruição do veIho Recife (...) O sofrimento íntimo dos atingidos pelas reformas, e que são obrigados a melancolicamente abandonar o cenário de tantos anos de vida (...)
Detalhe da Igreja do Poço.
Esse contacto permanente com a natureza parece ter sido a marca do viver pernambucano. E os personagens de OS AZEVEDOS DO POÇO têm a consciência do quanto essa interação homem-natureza lhes é necessária. (...) O romancista, aliás, está sempre atento ao bem-estar humano dentro da paisagem.
Cais da Lingueta, local, no romance, onde estavam estabelecidos os ricos comercientes da família Azevedo.
Detalhe de um cartão postal de 1905 retratando o Cais da Lingueta
Professor de História e, mais que isso, habituado às pesquisas sobre o passado recifense, Mário Sette não sente dificuldade ao querer situar os seus personagens.
Arco da Conceição, no Recife. Localizado entre o Cais da Alfândega e o Cais do Apolo, foi demolido em 1913 para alargamento das ruas para o trânsito de bondes e automóveis.
Conhecida desde os tempos coloniais por suas qualidades climáticas e pela tranquilidade do seu ambiente, a zona do Poço da Panela viria a se constituir, com o correr do tempo, em bairro aristocrático do Recife. Os velhos casarões de azulejos, alguns rodeados de jardins e com imensos terraços, ainda atestam, em nossos dias, a grandeza passada.
"O bonde passava o arco sobre a ponte e eu, no último banco. Olhava para trás, para o 'seu sobrado'."
Ao escrever OS AVEVEDOS DO POÇO Mário Sette – tal como fizera em SEU CANDINHO DA FARMÁCIA – não quis outra cidade senão o Recife, para nele fazer viver os personagens. (...) em OS AZEVEDOS essa ação se espraia entre pontos extremos da cidade pulando do aristocrático Poço da Panela ao remediado bairro dos Coelhos, fazendo triangulação com o operoso bairro do Recife onde se localizavam os escritórios das firmas comerciais grossistas (...)
Casarão no Poço da Panela, Recife.
Mário Sette parece haver longamente observado as velhas maledicentes e mexeriqueiras do seu tempo, pois ele transpôs com grande segurança para o romance a técnica sutil de que se servem na abordagem dos assuntos mais delicados.
Antigo casarão do Recife
Ao término da visita a melancolia enche também a alma do leitor que acompanha os personagens nessas despedidas do velho casarão
Igreja do Corpo Santo - que em breve também seria demolida - em meio aos escombros de outros tantos prédios derrubados para a ampliação do porto do Recife.
O romance OS AZEVEDOS DO POÇO, de Mário Sette, focaliza o cotidiano de duas famílias residentes no Recife, no período de fins do século XIX e começos do século XX. O Recife aparece como uma pacata cidade com a população estimada em 113.106 habitantes. A cidade de então possuía 245 ruas, 29 praças, 215 travessas e 67 becos. Havia, em sua área urbana, 17.147 prédios, dos quais 16.595 eram habitados, variando os aluguéis entre dez mil e um conto de réis.
O Poço da Panela, povoação hoje integrada à área urbana da cidade, localizava-se à margem esquerda do rio Capibaribe, uma légua à noroeste do centro do Recife, “lugar saudável e deleitoso, onde muitas famílias se retiravam pelo tempo do Natal, além de outras, onde aí fazem residência ordinária”, no dizer de Manuel da Costa Honorato.
Com uma capela sob a invocação de Nossa Senhora da Saúde,
a freguesia do Poço da Panela possuía dois distritos de paz: Poço
e Apipucos, uma sub delegacia de polícia, uma cadeira de instrução
pública e uma população livre estimada, em 1863, em 10.825
habitantes.
O romance de Mário Sette, o mais festejado dente todos que escritor produziu,
procura reconstituir cenários, costumes, transportes coletivos, espetáculos
teatrais, corridas no Prado Pernambucano, festas religiosas e a vida urbana;
no bairro comercial e portuário do Recife e no bairro residencial da
Boa Vista.
Na primeira parte do romance, concernente ao século XIX, o escritor retrata
os banhos salgados das praias do Brum, da Lingueta e de Olinda (Boa Viagem ainda
não estava na moda), o movimento comercial das ruas da Cruz e da Cadeia,
os bondes de burro (companhia implantada no Recife em 1868) e os passeios nos
vagões da maxambomba (trem urbano inaugurado em 5 de janeiro de 1867).
A segunda parte do romance é marcada pela importante revolução
social e econômica que sofre o Recife, a partir do início das obras
de construção do novo porto em 29 de julho de 1908, que contribui
para a derrubada dos seculares sobrados do bairro portuário, da Igreja
do Corpo Santo (6 de março de 1913) e dos arcos da Conceição
e de Santo Antônio (localizados nas cabeceiras da atual ponte Maurício
de Nassau), para abertura de novas avenidas, aparecimento da iluminação
elétrica (28 de março de 1919), dos bondes elétricos (13
de maio de 1914), do serviço de saneamento (12 de dezembro de 1915) e
outras novidades de então.
O enredo ao romance movimenta duas famílias: Azevedos e Sales. Os Azevedos
simbolizam, na primeira fase do livro, o poder econômico. Ricos comerciantes
grossistas, importadores de secos e molhados, estabelecidos num grande sobrado
no Cais da Lingueta. Exploravam navegação de cabotagem, fazendo
o transporte marítimo ao longo do litoral nordestino, atividade que lhes
valia um enorme prestígio.
Joca e Zumba Azevedo eram prestigiadas figuras do mundo social e político
do Recife dos primeiros anos do século XX. Viviam como marajás,
realizando frequentes festas nos palacetes de Ponte D’Uchoa e do
Poço da Panela, fazendo constantes viagens à Europa; num tempo
em que as famílias pernambucanas conheciam primeiro os portos europeus
antes do Rio de Janeiro.
Zumba e sua esposa, Naninha, juntamente com os filhos Agostinho, Quininha e
Hermínia, moravam numa tradicional mansão, que pertencera ao seu
pai, na estrada Real do Poço.
Totônio Sales, corretor, elemento da classe média do início
do século, morava numa casa vizinha à dos Azevedos juntamente
com a mulher Dondon, o filho Malaquias, os pais e uma irmã solteira;
nesta família o autor se faz autobiografar.
- No que diz respeito ao aspecto autobiográfico do romance, OS AZEVEDOS
DO POÇO, Mário Sette em uma de suas costumeiras anotações,
nos espaços e braço de seus livros anota com sua letra ser os
capítulos 3°, 12°, 5°, 18° e 24°, autobiográficos,
o que veio se confirmar quando da publicação de sua obra póstuma:
MEMÓRIAS ÍNTIMAS (Recife 1980).
No romance, Quininha, filha de Zumba, moça de temperamento exemplar,
oposto ao de sua mãe, Naninha, apaixona-se pelo jovem Elpídio,
primo de Totônio Sales, que para os Azevedos era possuidor de maior dos
defeitos: ser pobre.
Zumba e Naninha levam a filha para a Europa e lá, num arremedo de chantagem,
fazem o seu casamento com um diplomata brasileiro. De volta ao Recife explode
a paixão de adolescente e lá a jovem senhora abandona o marido,
o lar paterno, para viver maritalmente com seu primeiro namorado: Elpídio.
A segunda parte do romance retrata, no exemplo dos Azevedos, a decadência
da burguesia do Recife, no período que antecedeu à primeira guerra
mundial. Os Azevedos perdem o grande sobrado do Cais da Lingueta, demolido
para ceder lugar às obras do porto, e passam a ocupar um prédio
comercial na rua da Praia. Os negócios vão mal, a navegação
já não se faz, o prestígio social decai e o acatamento
político não mais existe.
Numa tarde da festa da padroeira do Poço da Panela, Nossa Senhora da
Saúde, Zumba é acometido de um mal súbito e vem a falecer
sozinho dentro de seu carro puxado por cavalos que caminham desgovernados em
direção à mansão senhorial da Estrada Real do Poço.
OS AZEVEDOS DO POÇO, romance de Mário Sette publicado no Rio de
Janeiro em 1938, é hoje quase desconhecido das novas gerações.
De há muito esgotado, o romance é citado e relembrado pelos mais
antigos que têm nele um dos maiores sucessos literários deste escritor
recifense que, mais uma vez, temos a honra de reeditar.
A exemplo de SEU CANDINHO DA FARMÁCIA, OS AZEVEDOS DO POÇO é
um dos clássicos da literatura pernambucana, que além de traçar
o perfil social de uma determinada época, está a merecer as atenções
de todos os que se interessam pelos estudos Pernambucanos.
Fonte: Prefácio por Leonardo Dantas Silva da reedição de SETTE, Mário. Os Azevedos do Poço. Recife: FUNDARPE, 1985.
OS AZEVEDOS DO POÇO são exemplo típico de romance previamente planejado, não só em sua estrutura geral, como também em seus detalhes e, só posteriormente, “construído” sobre o traçado pré-estabelecido. É a afirmação que não implica, diga-se de passagem, juízo de valor e apenas busca deslindar o método de trabalho de um escritor já maduro e senhor de seu “métier”.
E o que nos leva a acreditar que assim realmente tenha sido? Antes de mais nada,
o rigor geométrico da estrutura do romance, onde o autor primeiramente
prepara o “cenário” dentro do qual quer fazer passar-se a
sua história, consegue, então, com seus conhecimentos de arqueologia
social recifense, “mobiliar” esse cenário com meticuloso
cuidado que, partindo da arquitetura, do mobiliário e do vestuário,
passa pelos meios de transportes, hábitos, linguajar e chega até
aos preconceitos e às idéias políticas do Recife dos fins
do século XIX.
E quando nesse cenário insere a aristocrática família (aristocracia
da indústria canavieira) dos Azevedos, esse grupo familiar, dando sequência
à estruturação do romance, aí se expande e brilha,
do mesmo jeito que, posteriormente, haverá de caminhar para a sua extinção,
acompanhando nisso um certo período, que também chega ao fim,
da vida do Recife.
Os sete primeiros capítulos do romance são de uma grande
lentidão descritiva. É que neles o autor prepara o cenário
onde irá fazer eclodir os dramas de tantas vidas. Aí, também,
nomeia os personagens, conta-lhes as origens e lhes define a situação
familiar e social. E nessa minúcia balzaqueana não chega
a ameaçar o interesse romanesco da obra porque enriquece essa apresentação
do seu “dramatis personnae” com a vivacidade de múltiplas
referências vivas e evocadoras do brilho recifense de outrora.
Conhecia desde os tempos coloniais por suas qualidades climáticas e pela
tranquilidade do seu ambiente, a zona do Poço da Panela viria a
se constituir, com o correr do tempo, em bairro aristocrático do Recife.
Os velhos casarões de azulejos, alguns rodeados de jardins e com imensos
terraços, ainda atestam, em nossos dias, a grandeza passada. Que melhor
ambientação para uma abastada e orgulhosa família em seus
melhores dias? Depois e cuidar de mostrar como a própria vida vai-se
encarregando de quebrar o orgulho, destruir os preconceitos e aniquilar a soberbia
dos que se colocam muito acima do resto das gentes.
Professor de História e, mais que isso, habituado às pesquisas
sobre o passado recifense, Mário Sette não sente dificuldade ao
querer situar os seus personagens. Ele que em SEU CANDINHO DA FARMÁCIA
demonstra saber movimentar-se no espaço acanhado e de pouco brilho onde
se agitam “os classe média baixa” do bairro de São José,
dos primeiros anos do século XX, vai mostrar, agora, que o espaço
que ocupa a alta burguesia, frequentemente aristocratizada pelos títulos
de Barão ou de Visconde distribuídos pelo imperador, mas enriquecida
pelo açúcar ou pelo comércio grossista, também lhe
é familiar.
O primeiro capítulo de OS AZEVEDOS DO POÇO é um capítulo-chave
de todo o livro. Ele dá o “tônus” de toda a obra.
E já desde essas primeiras páginas vai o escritor como que
caracterizando a sua gente ao designar-lhes as moradias, seja através
do sobrado dos Azevedos do qual nos indica o “aspecto de severidade
e de agrado com sua fachada e oitões revestidos de esplêndidos
azulejos amarelos”, seja do palacete de Joca (embora este fique
em Ponte d’Uchoa) cujo luxo interior é assinalado.
E é partindo da casa que o escritor vai ao vestuário, ao mobiliário,
ao lazer e até ao sexo.
Assim Zumba Azevedo, em torno de quem praticamente, girará toda
a trama do romance, vai à cidade, segundo os melhores figurinos
do tempo, “de fraque azul-marinho e calças brancas”,
e usa uma “luneta de ouro pendente de um trancelim de seda”,
enquanto o Joca, seu irmão, está sempre “impecável
no trajo talhado à francesa” e vem acompanhado de criado
que lhe traz uma “bolsa de couro com monograma” e
“guarda-chuva de cabo de marfim”. Esse mesmo Joca,
em noite de baile e por motivo de galanteio não correspondido,
tivera o rosto arranhado por “um leque de plumas pretas”.
Joca, aliás, acidentado em queda de cavalo e hospedado, até
a cura, na casa-grande do engenho Guadalupe, permanecia “deitado
numa cama de jacarandá cujas cabeceiras curvas e entalhadas lembravam
popas de antigas caravelas”, enquanto durante as longas e calmas
noites da sua convalescença ouvia a Baronesa que se apresentava
“ainda com a segurança dos seus tempos de moça
no instrumento em que se fizera uma gabada intérprete: a harpa”.
Já D. Dondon, esposa do corretor de açúcar Totônio
Sales, também moradora do Poço da panela, deixava fugir
“para o alpendre cheirando a jasmins os sons do piano em que
tocava a “Chanson Russe” ou a valsa “Minha esperança”.
(Pág.37).
No que respeita ao sexo, o romancista, depois, de assinalar a predileção
dos Azevedos, ainda solteirões, pelas “mulheres do palco”
e pelas “francesas da pensão Siqueira”, não
esquece de transmitir ao leitor um “potim” que transpirara
da vida familiar dos avós de D. Naninha Gama (com quem se casaria
Zumba Azevedo), cuja avó, “ao descobrir certa vez o marido
festejando, dentro da própria casa-grande, uma mulatinha em serviços
de mucama, mandara vender a rapariga a um senhor de engenho perverso da
vizinhança, e ela passara a dormir num marquesão do quarto
conjugal, ao lado do esposo, mas sem nunca mais lhe ter “dado confiança”embora
tentando-o com a presença, porque não quisesse misturar
seu corpo perfumado a água de colônia com o bodum das negras
da senzala...”
Buscando, não diremos “justificar”, mas pelo menos
“explicar” a “altitude, orgulho e presunção”
dos Azevedos (e mais particularmente de Naninha Azevedo, esposa de Zumba),
o romancista, “doublé” de historiador nos
apresenta a ascendência ilustre da mulher de Zumba em termos tais
que nada fica a dever, no seu ar de autenticidade, às genealogias
que registram os mais sisudos historiadores dentre quantos já esmiuçaram
a formação da nossa sociedade canavieira e escravocrata.
É página que altamente contribui para a fixação
do clima de “tradição de opulência, força
e prestígio” em que vivem os Azevedos:
“Naquela época estava Guadalupe (engenho dos Barões de Guadalupe, pais da esposa de Zumba Azevedo) entregue a Viriato Lins da Gama que andara metido nos barulhos de 1817 e somente escapara da sanha punitiva do governador Lins do Rego por atenção aos feitos de seus antepassados, “credores das mercês do Reino”. Viriato casara-se ainda moço com a senhorinha mais gabada pela beleza e pelas prendas dos engenhos circunvizinhos: - Balbina dos Wanderley Bandeira, filha caçula dos bandeiras do Engenho Tapirussu. Menina criada com todos os melindres da sua linhagem, louvando-se extremamente da branquidão e da bravura dos ascendentes, um dos quais, o batavo Wanderley, se batera naquelas terras contra Matias de Albuquerque, ali se ficando, depois da paz, para fundar uma moenda de cana, com roda d’água, constituindo família brasileira”.
Nem Pereira da Costa faria melhor...
Resta-nos, agora, fazer referência a um aspecto do trabalho de documentação
que parece ter sido desenvolvido por Mário Sette durante a preparação
do seu romance. Queremo-nos referir ao problema da linguagem popular,
sobretudo em seus jogos semânticos, que ele tão bem fixou,
o que é tema, aliás, que fica a merecer aquele aprofundamento
que as dimensões, bem como a orientação fundamentalmente
literária deste trabalho, não permite levar adiante. Mas
o fato é que muito longamente se há de ter documentado o
escritor, instituindo o seu “dossier” de expressões
de uso popular para nos surpreender a cada instante com o termo usado
no pitoresco sentido em que o utilizava o povo, sentido do qual sequer
nos lembrávamos mais e que, posto na boca desse ou daquele personagem,
ou, mesmo, expressando a intervenção direta do narrador/autor
na apresentação de algum instante privilegiado da sua criação,
ressoa de repente aos nossos ouvidos, acordando ecos lá no fundo
de nossa memória.
Um único exemplo, ao acaso: aquela descrição da Festa
de Nossa Senhora da Saúde, no Poço da Panela, em que os
fiéis se preparam para entrar na igreja. “Muitos”
– diz o romancista – “trocavam, à porta,
uma estampa da santa”. E nós nos lembramos, então,
daquelas nossas velhas parentas que, durante toda a nossa infância,
tantas vezes nos advertiram de que imagem de santo “não se
compra”, mas “troca-se por dinheiro...”
E há que se fazer referência, aqui, a um inesperado problema
que o gosto da autenticidade levou o romancista a criar e que é
o da existência no livro de numerosas expressões populares
que já perderam o seu sentido para o leitor de hoje, mesmo para
aquele que está habituado à frequentação
de bibliotecas. De uso corrente na época da redação
do livro, hoje nada mais significam para esse leitor, pelo que a organização
de um pequeno glossário (ou pelo menos a inclusão de notas
“tradutoras”, de pé-de-página) se impõe
para alguma nova edição, de que se venha a cuidar, de OS
AZEVEDOS DO POÇO. Realmente, o que significarão para os
leitores novas expressões como o “olho de Jombondó”
ou “onze letras”?
Finalmente, cite-se, ainda, nesta perscrutação dos métodos
de trabalho de Mário Sette, a página de OS AZEVEDOS DO POÇO
em que o romancista, intervindo diretamente no texto, naquela posição
de narrador onisciente, deixa sobre o papel, talvez sem senti-lo, valioso testemunho
sobre o seu modo de agir. Trata-se, então, de Malaquias, personagem menor
na trama romanesca que, ao voltar ao Rio de Janeiro, onde tivera por alguns
anos a tentar a vida, consegue emprego em firma comercial recifense.
A sua total inabilidade para a compra e venda irá, entretanto, relegá-lo
a uma inexpressiva seção de empresa onde seus contatos se restringiram
a pobres mulheres, velhas, doentes e desamparadas, que ali vão em busca
de serviços a serem executados em casa para o setor de roupas feitas,
obras de carregação, para se vender ao “povo baixo”.
O que há de interessante aí, é podermos descobrir que o
Malaquias, com surpreendente altitude intelectual.
“Soubera, para si mesmo, para sabor do seu próprio pendor espiritual, criar anfiteatro anatômico de almas, num campo de estudos das criaturas”,
Pois“as costureiras, todo dia, subiam as escadas do escritório, umas à procura de costuras, outras as trazendo prontas. Mulheres de todas as idades, planos, fisionomias, modos... Umas avelhantadas, morosas, tristes; outras lépidas, comunicativas, “metidas”; tantas com uns ares recolhidos, indefiníveis, quase misteriosas (...) amostras de todos os infortúnios, sacrifícios, dedicações, paciências, penúrias...”
Ao querer o leitor determinar a época em que se situa a ação
do romance, se as descrições do vestuário, do mobiliário,
dos meios de locomoção, etc., bem como de outros miúdos
eventos marcantes do viver recifense de outrora não lhe forem suficientes
para a exata identificação do período em que se processa
a ascensão e queda dos irmãos Azevedo no seio da sociedade recifense,
bastar-lhe-à acompanhar os reflexos das inquietações políticas
nacionais que, às vezes, repontam sob a pacatez da via provinciana.
Mas tudo é surpreendido através das frases reticentes de diálogos
captados ainda quentes, mal saídos das bocas que os pronunciaram. Nada
de uma "dissertação histórica" sobre o acontecido;
só o fato se impondo ao leitor através das conversas dos personagens
como nesse diálogo entre o Barão de Iputinga, o major Luciano,
do engenho Alvorada, o Pinto, “do antigo Clube do
Cupim", e o Comendador Joca Azevedo, numa das mesas do Schipchandler do
Clube (bar da zona portuária recifense que chegou até os nossos
dias), a respeito da difícil situação brasileira daqueles
momentos.
É uma tarde de um dia útil qualquer. O comendador almoçara
com o irmão, Zumba de Azevedo, em restaurante da Lingueta, e, enquanto
Zumba, mais envolvido com os negócios da firma, retornava ao armazém,
Joca, depois de passar pela Associação Comercial, vai ao Schipchandler,
onde fica a palestrar com alguns amigos sobre as consequências econômicas
da abolição da escravatura e sobre o imperador que, ao alforriar
os negros, apenas quisera – na opinião de um dos presentes - "fazer
cortesia com o chapéu alheio":
"... Por isso mesmo, retruca outro – está se vendo em caldos agora. Não há gabinete que se aguente. Nem Cotegipe com sua habilidade, nem João Alfredo, com suas pomadas de amigo dos escravos, nem o próprio Ouro Preto com sua brabeza."
Estamos, pois, nos fins do século XIX, as vésperas da proclamação
da República, e os Azevedos em plena ascensão econômica
e social.
O povo estará nas ruas cantando o
Salvai, salvai
Querido general ...
quando a história dos Azevedos, ou pelo menos do prestígio dos Azevedos estiver chegando ao fim. E mais de três decênios terão decorrido. Decênio durante os quais a história da família ter-se-à fundido com a do Recife ou, melhor, com a história da modernização do Recife que então se estará completando.
Fixada, assim, a época em que se situa a ação do romance,
é interessante verificar como o escritor “vê” esses
velhos tempos recifenses. E as tintas com que ele nos pinta esse mundo de nossos
avós parecem despertar, no leitor de hoje, a estranha sensação
de ter sido roubado. Realmente, a pacata vida de ontem, contrastando com a inquietação
dos nossos dias – quando a violência correr as ruas e a ganância
sem contenção dos ricos segue de mistura com revolta e truculência
dos pobres e com a corrupção de tantos homens públicos
– nos leva a perguntar se valeu a pena pagar tão alto preço
pelas parcas vantagens materiais de que desfrutamos sobre aqueles velhos dias.
A certa altura do romance o autor nos diz:
"A vida habitualmente não sofria grandes transformações no casarão do Poço em que morava Totônio Sales com a sua gente. Os dias eram quase uniformes. A não ser num aniversário no novenário da Saúde, numa outra data festiva qualquer, em que os parentes não faltavam e com eles os "amigos", enchendo as salas e a mesa elástica de oito tabuas largas com os quietutes feitos pela mão de Chichica. De comum, o sossego e a sombra."
O romancista, aliás, está sempre atento ao bem-estar humano dentro
da paisagem. E ao buscar retransmitir-nos – a nós habitantes da
"selva de pedra" em que também se tornou 0 Recife de nossos
dias – uma maneira de viver bem pernambucana de outrora, ele se mostra,
numa espécie de antecipação às preocupações
ecologistas de hoje, homem que sabia valorizar rios árvores mares, sol
e sombra, em ameno equilíbrio na velha mãe-natureza.
Assim, já nos primeiros capítulos do romance, quando Zumba ainda
descansava em terras do engenho Guadalupe e se refazia do acidente que sofrera
com a queda do seu cavalo, ia ele diariamente, para o terraço da Casa
Grande do engenho e ali se punha a
"sorver aquele ar puro e franco que trazia de mistura o aroma das matas a contornarem o cercado numa espécie de muralha verde e o cheiro do mar que embora distante se avistava num último plano após uma sucessão de encostas e vales vestidos de canaviais."
E mais tarde, já casado, Zumba reunia, aos domingos, os amigos para o joguinho de lansquenê debaixo de um caramanchão porque ali
"uma ramalhuda jaqueira ajudava o pé de trepadeira, todo em flores azuis, a proteger do sol os jogadores. E o local além de fresco e agradável tinha um golpe de vista para curva do rio."
Esse contacto permanente com a natureza parece ter sido a marca do viver pernambucano. E os personagens de OS AZEVEDOS DO POÇO têm a consciência do quanto essa interação homem-natureza lhes é necessária. Assim quando o já citado Malaquias, o filho de Totônio Sales que passara toda a infância no Poço da Panela, volta do Rio de Janeiro, um dos seus primeiros desejos é rever o velho arrabalde. São passeios que se fazem numerosos e num deles encontra aberta, em reparos, a casa onde vivera com seus pais. A emocionada visita que ele faz ao casario rende ao romancista página magistral. Há como que uma ressurreição de mundos mortos. E em poucas linhas tudo ali perpassará deixando-nos o tão conhecido, mas nem por isso menos amargo, sabor da fragilidade de nossas vidas, de nossos sonhos e a sensação de impotência ante a voracidade do tempo que tudo engole. Mas o que vale, sobretudo, nesse momento fixar são os termos de comparação que, dominado pela melancolia, o personagem estabelece entre sua vida e o rio que marcara a sua meninice:
"Comparava-se por vezes a um barco que acostumado a navegar nas águas calmas de um rio – e ele via, nesse rio imaginário, a paisagem calma e límpida do Capibaribe, ali no Poço, quando menino – e, de repente, fosse impelido por um vento brabo para o alto mar... Desgovernara-se a princípio, mas contivera o leme e aprendera a navegar entre ondas altas e crespas. Contudo sonhava voltar aos trajetos antigos no "seu rio" tão quieto tão manso, tão doce."
Ao escrever OS AVEVEDOS DO POÇO Mário Sette – tal como fizera em
SEU CANDINHO DA FARMÁCIA – não quis outra cidade senão
o Recife, para nele fazer viver os personagens. Mas enquanto em seu romance
anterior tudo se restringia, com exceção de um rápido passeio
às praias do norte da cidade a um único bairro recifense: o de
São José, ainda um florescente bairro familiar na época
em que se situava a ação do romance, em OS AZEVEDOS essa ação
se espraia entre pontos extremos da cidade pulando do aristocrático Poço
da Panela ao remediado bairro dos Coelhos, fazendo triangulação
com o operoso bairro do Recife onde se localizavam os escritórios das
firmas comerciais grossistas, entre as quais a dos irmãos Azevedo, antes
que o “bota abaixo" recifense, imitado do carioca, de Pereira Passos,
os expulsasse dali.
Talvez por isso mesmo, por essa necessidade de captar o Recife em largo panorama,
o autor buscou encaminhar bons instantes da sua história para lugares
típicos onde o mundo recifense de então se divertia e, assim,
se fazem presentes, ao lado da Festa de Nossa Senhora da Saúde do Poço
da Panela, as corridas do Hipódromo de Campo Grande e as representações
das Companhias líricas, no Teatro Santa Isabel, em pleno coração
do Recife.
A descrição da Festa do Poço da Panela, que ocupa todo
o capítulo VIII do romance, nos leva de volta a descrição
da mesma festa popular em um velho autor: Carneiro Vilela, em cujo romance A
Emparedada da Rua Nova(*) ela se espraia por dois capítulos inteiros:
"A Bandeira do Poço” e "Um Encontro de Jaime". Isso
nos permite descobrir em Mário Sette um leitor de velhos ficcionistas pernambucanos,
o que, aliás, ainda se torna mais evidente ao descobrirmos, no final
do citado capitulo VIII, de OS AZEVEDOS DO POÇO, uma mulher esfaqueada
em briga durante os festejos e que é transportada de padiola para o hospital,
episódio em que descobrimos a ressonância de cena similar figurando
no capítulo inicial de “Passionário”, de Theotônio
Freire, outro velho ficcionista pernambucano hoje inteiramente esquecido.
Entre as duas “Festas do Poço", a de Carneiro Vilela e a de
Mário Sette, há todavia uma diferença: a que vem dos temperamentos
diversos dos dois escritores. Carneiro Vilela, confirmando o folhetinista vibrante
que havia nele, preocupa-se mais com o aspecto dinâmico da festa, isto
é, o cortejo noturno da Bandeira de Nossa Senhora, a movimentação
do povo pelo pátio e, sobre tudo, a eclosão da imensa confusão
provocada pela falta de habilidade de um português galanteador... Em Mário
Sette ocupa maior relevo o lirismo da festa popular, com o pátio da igreja
iluminado, as barracas de prendas, as comidas fartas postas a venda nos tabuleiros,
e, até, um baile refinado em casarão das redondezas, com quadrilhas
marcadas em francês, malgrado o esfaqueamento, lá pelo fim do capítulo,
da Deolinda, como para não esquecer a costumeira violência das
festas populares recifenses...
As corridas do Hipódromo, em Campo Grande (instituição
que precedeu o atual Jóquei Clube, no bairro do Prado), têm dentro
da trama romanesca função vital. Elas que, à época,
atraíam a melhor sociedade recifense, propiciarão o reencontro
entre Quininha, a filha de Zumba Azevedo, casada, mas desajustada com o marido,
e Elpídio, o "irmão das boleiras" (na expressão
de desprezo de Naninha Azevedo), mas na verdade a grande paixão de Quininha.
Já o Teatro Santa Isabel permite ao romancista a apresentação
de uma grande noite recifense. O leitor acompanha, então, Elpídio
que, trabalhando em banco, continua, lentamente, a sua ascensão
social. Com ele vai reservar, pela manhã, uma frisa para o espetáculo
e com ele penetra, à noite, no teatro e, enquanto aguarda o início
da representação, da um mergulho, auxiliado pelos comentários
dos frequentadores, em pleno mundo social recifense de então. E
todo esse mundo morto se reanima, e torna a viver, com os fraques elegantes
e os colarinhos de pontas dobradas dos homens de barbas negras e aparadas
e os vestidos de seda, as jóias caras e os caprichosos penteados
das mulheres a brilharem sob a forte luz do grande lustre central (hoje
desaparecido) do veIho Teatro. E a essa altura não podemos deixar
de fazer referência à sutileza com que no romance é
colocado o problema do tempo, devorador dos homens. É logo em suas
primeiras linhas, quando o autor apresenta os irmãos que serão
as principais figuras da história que ali se começa a narrar
e deles diz serem filhos do finado Manuel Homem de Azevedo, "familiar
à gente de seu tempo pelo tino do negócio, pelo persistente
trabalho e, mesmo, pela alcunha de "Mandu das Alvarengas", imposto
pelo relevo da exploração dessas embarcações
no tráfego do porto". E é como se quisesse fixar
o pouco que ainda restasse da lembrança de um homem que, tendo
sido um "notável" em vida, já estivesse sendo
arrastado para o total esquecimento pelo eterno fluir do rio do tempo,
que, de resto, também já havia levado quase todos os seus
contemporâneos, aqueles que, por algum tempo, tinham mantido viva
a memória do homem atuante que ele fora.
Se é inegável a paixão do romancista por sua cidade, também
não se pode negar uma certa reserva sua – já conhecida dos
leitores de SEU CANDINHO DA FARMÁCIA – quanto aos recifenses. Ou
melhor, quanto a certos preconceitos e defeitos de caráter de uns tantos
recifenses.
Em torno de um deles, hoje, aliás, por força de uma campanha sistemática
de nossos antropólogos, sociólogos e políticos, já
um tanto ultrapassado, é construída boa parte do romance: o preconceito
de cor. Pois não é somente a diferença de fortuna que leva
os Azevedos a impedirem o namoro de Quininha com Elpídio. É também
a cor da pele do rapaz.
Quininha, a "flor dos Azevedos" "se eu não
soubesse da Comadre Antonia que essa menina tinha mesmo saído da
barriga de D. Naninha, não acreditava, não –
diziam na vizinhança do Poço" causa, aliás,
mais de um aborrecimento à família com suas inclinações
democráticas. Veja-se, a propósito, por exemplo (capítulo
II), os cochichos da Viscondessa do Arraial com D. Rosa Castanheira, no
baile do Clube Imperial, a respeito da contradança a que a moça
concede ao doutorando mulato Amaro Mendonça.
O outro vezo recifense que o escritor não perde de vista é o da
maledicência, que se constituíra no tema central de SEU CANDINHO
DA FARMÁCIA, onde ela tirava a sua força da sistemática
e continuada campanha movida por Candinho contra seu afilhado. Agora, embora
o tema principal seja outro e outra forçosamente a estrutura do romance,
ela não deixa de fazer a sua aparição e é encarnada,
com muito flagrante e muita veracidade, em D. Sinhá Tinoco.
Mário Sette parece haver longamente observado as velhas maledicentes e mexeriqueiras
do seu tempo, pois ele transpôs com grande segurança para o romance
a técnica sutil de que se servem na abordagem dos assuntos mais delicados.
Observe-se, a propósito, a habilidade de que se vale a aludida D. Sinhá
Tinoco para colocar no ouvido de Elpídio a "explicação"
do casamento de Quininha e encaminhar o reatamento dos velhos amores.
Entre SEU CANDINHO DA FARMÁCIA, que é de 1931, e OS AZEVEDOS DO
POÇO , de 1948, há, entretanto, uma como que liberação
do escritor da sua velha obsessão da maledicência recifense. Certamente
que tudo não se esvaneceu. Mas um certo amadurecimento da visão
do autor há de ter contribuído para colocar os Linguarudos no
seu nível de importância dentro da escala dos males que atormentam
o recifense.
Os estudos de história da sua cidade a que nesse entretempo se dedicou,
as pesquisas que empreendeu sobre o quotidiano recifense dos tempos idos e que
lhe permitiram publicar MAXAMBOMBAS E MARACATUS em 1938, ANQUINHAS E BERNARDAS,
em 1940, BARCAS A VAPOR, em 1945, e ONDE OS AVÓS PASSARAM, em 1947, alem
de preparar o imenso ARRUAR: HISTÓRIA PITORESCA DO RECIFE ANTIGO, que
seria publicado no ano seguinte ao da saída de OS AZEVEDOS DO POÇO,
tudo isso parece ter feito repontar no espírito do escritor a consciência
da prevalência – entre tantos defeitos, e também tantas qualidades
– da vocação igualitária da gente recifense. Ao mesmo
tempo Mário Sette parece sentir que uma certa "morgue" burguesa que
se erguia na sua cidade, destoando da tendência geral democratizante,
além de constituir material excelente para um romancista, estava bem
necessitando de ser profligada.
Assim, o que se contestará aos Azevedos não será sua riqueza,
mas sua arrogância, que se afirma, às vezes, até por trás
de uma aparência benevolente ou, mesmo, bondosa. À baronesa, por
exemplo, o que se censura é que se ponha tão acima de todos, nisso
indo por vezes até a crueldade insensata, como na sua oposição
ao namoro de Quininha, ainda solteira, com o jovem Elpídio.
Assim, embora voltado para a aristocracia do açúcar, cuja vida
descreve, o livro ressuma de respeito e consideração ao povo,
aí se incluindo certa inconformação com a miséria
das classes mais baixas da população, representadas, no Poço,
pelos moradores do "quadro".
Ao mesmo tempo, veja-se a simpatia com que o autor se refere "às
meninas", isto é, as filhas solteironas de Totônio Sales,
pelo apego e pela proteção que, no seu modesto chalé dos
CoeIhos, dão aos negros e negras que, vindos do cativeiro, lhes enchem
a casa, inclusive dando crias que "as boleiras" tratam como maior
carinho e buscam encaminhar na vida.
A fuga de Quininha, a filha dos Azevedos que abandona o marido com o qual fora,
praticamente, obrigada pelos pais a casar-se, marca o fim da primeira das duas
épocas em que é dividido o romance. Esse ato de rebeldia familiar
assinala, também, para a família, o início dos "novos
tempos" em que o fastígio dos Azevedos começa a se esboroar.
Mas é sobretudo a chamada "modernização do Porto do
Recife " que lhes vai precipitar a queda. A pretexto de urbanização
do velho bairro em que se engastava o ancoradouro a que se desejava trazer os
navios de grande porte e alegando a necessidade da abertura de grandes e largas
avenidas que ligassem o porto ao centro da cidade, foram estupidamente destruídos
além do velho típico casario da zona portuária, alguns
admiráveis monumentos arquitetônicos como a mais que centenária
Igreja do Corpo Santo e os típicos Arcos que dominavam as cabeceiras
de velhas pontes. Esse bota-abaixo recifense – cópia do que no
Rio de Janeiro promovera Pereira Passos, do mesmo modo, aliás, que este
copiara o que fizera o Barão Haussman, em Paris – independentemente
dos danos causados aos velhos exemplares arquitetônicos recifenses, bulira
com muita gente e causara, ao lado de entusiasmos aos progressistas, os protestos
e as revoltas dos que foram dessa ou daquela maneira atingidos pelos trabalhos
de demolição.
É coisa que todos conhecíamos através das páginas
dos historiadores ou dos críticos de arte que se voltaram para esse polêmico
assunto. O que nos faltava era o reflexo no quotidiano recifense de então,
do áspero problema. E esse, é Mário Sette quem nos vai mostrar
o que habitualmente nos chegava através de frios e distanciados textos
históricos transforma-se em coisa "presente", com a força
de convencimento do fato que está sendo ainda vivido.
Somos, então, levados a passeio pelo canteiro de obras em que se transformara
todo o bairro do Recife e assistimos ao trabalho gigantesco que a Prefeitura
da cidade ali desenvolve para desmanchar os velhos sobrados dentro dos quais
três séculos de vida recifense haviam deixado o frêmito da
sua passagem. O longo trecho em que o escritor nos apresenta o desventramento
dos prédios, deixando à mostra pedaços de paredes que foram
de salas ou de alcovas e que ali ficam impudicamente "evocando intimidades",
e uma página forte do romance, como magistral e também a expressão
com que o escritor encerra, pela boca de Zumba Azevedo, o seu melancólico
comentário sobre a destruição do veIho Recife:
"No meio dessas agonias todas, um chamado de Nosso Pai(**). Fui acompanhar. Tomei minha capa. Aquele Nosso Pai, passando por essas ruas destroçadas, me parecia mais para o pobre do bairro do que para aquela mulher à toa do beco das Sete Casas ...(Pag. 189).
O sofrimento íntimo dos atingidos pelas reformas, e que são obrigados
a melancolicamente abandonar o cenário de tantos anos de vida, é
melhor espelhado na visita de despedida que Zumba Azevedo, sempre acompanhado
do fiel secretário Xixi, faz a todos os andares do sobradão azulejado
do Pátio do Corpo Santo em vias de ser entregue às picaretas municipais.
Esta visita, dolorida, marca por assim dizer, o fim da saga dos Azevedos. Encerra
um tempo: o destes altos comerciantes recifenses que não souberam, ou
talvez, mais certamente, não puderam acompanhar a evolução
da cidade que, durante duas gerações, ajudaram a construir.
Violentados, traumatizados, conscientes da decadência em que mergulhavam,
Zumba de Azevedo e Xixi vão, pela última vez, percorrer o
edifício antes de abandoná-lo. E em cada andar do grande sobrado
de fachada de azulejos e com "aquelas quatro portas largas, aquelas
pinhas de louça na cornija, (e) aquele ambiente de mais de um século"
(pag. 127), as lembranças afluem em ondas.
São fatos, momentos diversos, passados e vividos ao longo de tanto tempo
no sobradão que já fora residência da família antes
de transformar-se em empório comercial.
E essa onda de recordações trará no seu bojo até
a revelação, para o leitor, da até então inexplicável
fidelidade canina de Xixi aos Azevedos, ao ser desvendada a sua recolhida paixão
por Angelina, a irmã de Zumba, morta pela tuberculose ainda em plena
mocidade.
Ao término da visita a melancolia enche também a alma do leitor
que acompanha os personagens nessas despedidas do velho casarão:
"Foram, ambos, descendo, descendo as escadas. Cada um deles fechando cuidadosamente porta por porta, vidraça por vidraça, postigo por postigo, nos andares vazios e abandonados, mas tão cheios de recordações para eles dois, como se quisessem com essas folhas de madeira e de vidro do tempo antigo deter o avanço do bota-abaixo." (Pag. 203.)
Praticamente aí se encerra a trama romanesca de OS AZEVEDOS DO POÇO. A Mário Sette, como bom artista perfeccionista, e à maneira das bordadeiras nordestinas que não gostam de deixar rebarbas no bordado que terminam, resta apenas atar alguns fios soltos para dar a obra por terminada. Uma última e rápida referência à festa do Poço porque é dia santo: dia de Nossa Senhora da Saúde; alguns instantes no novo armazém dos Azevedos (agora na Rua da Praia e sem a imponência do sobrado do Pátio do Corpo Santo), enquanto Zumba envelhecido repassa mentalmente toda a história da sua existência, ao mesmo tempo que olha, melancolicamente, os baús de flandres do seu arquivo, onde, ano após ano, foram depositados os documentos da firma. E é então a volta para casa onde Zumba nunca chegará porque a Parca, mansamente, o carrega no meio do caminho, pondo fim à sua historia de alto burguês vivido e sofrido, embora alegrado muitas vezes, num velho Recife, do qual o próprio Mário Sette dissera, certa vez, que tinha saudades porque deixou de ser o que era, mas que não pretendia que continuasse a ser o que foi ...(*) Ver: Carneiro Vilela. A Emparedada da Rua Nova.
romance, Apresentação de Lucilo Varejão Filho. Reedição
do Conselho Municipal de Cultura do Recife. Recife.1984.
(**) Para aqueles que acaso desconheçam o sentido da expressão:
era o viático levado por um sacerdote, com acompanhamento e certa solenidade
a um moribundo da paróquia.
Fonte: Trecho da apresentação de Lucilo Varejão Filho in SETTE, Mário. Romances Urbanos – os velhos mestres do romance pernambucano. Recife: Companhia Editora de Pernambuco – CEPE, 2005.