2ª edição, impresso em 1928 pela edtora Lello.

Locais que inspiraram o romance: imagens de Rio Formoso e de um velho engenho.

De permeio ao cântico de louvor à vida bucólica dos engenhos, o autor soube, entretanto, enxertar uma tragédia de alto fulgor.

O VIGIA DA CASA GRANDE (1924)

Lucilo Varejão Filho

Se SENHORA DE ENGENHO pode ser considerado como visão senhorial da terra, O VIGIA DA CASA GRANDE será a visão que, dessa terra e de seu uso, tem a gente humilde do campo. Sem ter, ela própria, um chão seu, onde se fixar e com sua vida regulada pela bondade, ou pela crueldade dos donos de terras com que se defronta, é, ainda, gente mansa que desconhece o uso da violência na reivindicação de seus direitos. Longe estamos dos ásperos tempos das ligas camponesas e da movimentação dos sem-terra dos nossos dias. E foi o mundo que Mário Sette encontrou ao descobrir o campo, nos primeiros decênios do século.

Até a natureza se mostra menos madrasta, nesses tempos de vivificantes invernadas, em que Benjamin Camboa, generoso senhor de engenho, de espírito justo e progressista, põe-se à frente da gente miúda de sua propriedade, Mata Verde, com uma visão bem moderna do que seja administrar suas terras.

Mas, o que dá especial relevo às páginas do romance é a visão do trabalhador do engenho, encarado como ser humano e cujos problemas pessoais, e de relacionamento com sua coletividade, são esmiuçados com o mesmo interesse com que Shakespeare esmiuçava a alma dos reis, rainhas e nobres de todo jaez. A paixão do carreiro Antônio Pedro pela infeliz Jovina nos comove com a pungência de forte drama humano.
Mas não se pense que sendo O VIGIA DA CASA GRANDE obra de escritor profundamente identificado com o povo e que não esconde a sua simpatia pelos deserdados que habitam brejos, caatingas e sertão, venha ele nos oferecer uma visão angelical e romântica do trabalhador rural.
Se dentro do engenho havia os enraizados, filhos, e até netos, de velhos moradores, que viviam em maior contato com a Casa Grande, e mostravam-se amigos do Senhor de Engenho, exercendo as tarefas mais importantes na propriedade e tendo, todos um nome e até uma história, a gente do eito, a que cavava a terra, plantava e colhia cana, mas, sem maiores ligações com o engenho, ela é encarada de realista. Talvez, mesmo, sem muita piedade. Assim, eis o que dele pensa o Fulgêncio, dono da vendola situada em terras de Mata Grande:

... ele conhecia bastante a índole andeja dos trabalhadores rurais. Nunca se enraizavam em terra alguma, por melhor que estivessem. Chegavam de repente, pedindo uma casa, um sítio, um lugar qualquer, e se atendidos, solicitavam também uma burra e portador para irem buscar em propriedade longínqua aos seus "trens". Aboletavam-se, depois de cinco, dez, vinte léguas aspérrimas, punham-se a laborar no eito, a lidar no engenho. Subitamente, valendo-se de pretextos mínimos ou à míngua de motivos, por mera veneta de jornadear, de outros ares, sem prenúncios, avisavam à Casa Grande sua deliberação de partir, quando não abalavam alta noite, como "criminosos".

Talvez como uma espécie de escusa, o romancista acrescenta:

Tara peregrinadora, sina andarilha, herança, talvez, de bandeirantes sertanejos, de escravos fugitivos...

Dada a época em que foi escrito e publicado o romance, compreende-se que tenha escapado ao seu autor o problema da dívida social que, hoje, a multiplicação e o aprofundamento das análises da violência no campo têm levado, inclusive os espoliados, a uma consciência da justiça das suas reivindicações.
Assim, não espanta que o romancista voltado para os enraizados dos engenhos, entre os mesmos encontre - como no caso de Antônio Pedro, carreiro de Mata Grande, logo descrito como "afeito ao trato do gado” – exemplos de valentia e habilidade no exercício de uma profissão rústica, e por vezes perigosa, mas longa e prazerosamente exercida.
Em Antonio Pedro e Terêncio, por exemplo, há o valor posto à prova nas tarefas campesinas como no episódio da busca do garrote bravio, comprado em propriedade distante e trazido à custa de cordas e força de muque, por entre barrancos, atoleiros, levadas e capoeirões até às terras de Mata Verde.
É essa gente que fornece a dinâmica da vida na propriedade. A descrição dos trabalhos de fabricação do açúcar é um primor de leveza e vivacidade. A apresentação da maquinaria do engenho, surpreendida em todo o dinamismo do seu funcionamento, é uma irrupção vitoriosa da técnica no terreno da ficção, sobretudo porque peças, métodos de trabalho, tudo é indicado já dentro da adaptação que faz o matuto, para a sua linguagem, de todo o processamento da fabricação. Mas a natureza também esplende nas páginas de O VIGIA DA CASA GRANDE. Mário Sette excele na descrição das terras de Mata Verde onde, em região hoje fustigada pela seca, ele assinala, no principio do século, invernadas generosas cobrindo de verde as encostas de morros, com suas plantações de cana de açúcar, e de verdes pastagens as planuras, numa promessa de fartura que dá ao livro um tom horaciano, na sua exaltação da vida campestre.
De permeio ao cântico de louvor à vida bucólica dos engenhos, o autor soube, entretanto, enxertar uma tragédia de alto fulgor. E não esqueceu ainda por cima de construir um enigma cuja decifração, em condições trágicas, só é feita pelo leitor nas últimas linhas do romance: o segredo da paternidade de Jovina. O amante de histórias tranquilas, dessas que deixam pacificado o espírito do leitor, deveria talvez deter-se antes dos instantes finais desse raconto que termina em dor e sofrimento.
E mais: até o atento leitor que julgara ver o eixo do romance girar em torno de Antônio Pedro e de Jovina, descobre, de repente, ter sido o sensato, respeitado e por todos amado, Amaro Paciência, o vigia da casa grande, o verdadeiro causador da tragédia que envolveu seu filho Antônio Pedro e sua filha, de não confessada paternidade, Jovina, e irá, à sombra de um incesto iminente, colorir de sangue as páginas finais do romance.

Fonte: Apresentação de Lucilo Varejão Filho in: SETTE, Mário. O Vigia da Casa Grande. Coleção Romances Rurais - os velhos mestres do romance pernambucano. Vol.5. Recife: Companhia Editora de Pernambuco – CEPE, 2005.