Cartão postal de 1907, retratando a Rua Benfica.
"Não se precisa lembrar que na fisionomia do Recife o rio predomina, porque ele está a se nos proporcionar a cada volta do percurso: numa rua que o contorna, noutra que a ele vai ter, numa janela com sotéia que o sobrepuja; numa ponte que o galga ou numa amurada que o contém".
Paisagens do Recife no princípio do século XX: acima, Rua do Bom Jesus, antiga Rua dos Judeus e abaixo Rua 1º de Março, antiga Rua do Crespo (ao fundo, Praça da Independência).
Lendo ARRUAR (1) e MAXAMBOMBAS E MARACATUS (2), dois livros sobre o Recife do final do século passado e início deste, fica-se deveras espantado diante da profusão de detalhes com que o autor descreve os costumes, os tipos, a indumentária, enfim, tudo o que constitui o tecido social de uma cidade num determinado momento de sua história.
São memórias que, embora retratando o social, não deixam de lado o componente autobiográfico, como, por exemplo, em “Carnaval do meu tempo”. Aí, onde a fantasia da criança introduz o poético na descrição de um acontecimento já por si carregado de motivações oníricas:
“Mascarados: que importância eles assumiam perante o meu espírito de criança! Tomava-os, na imaginação infantil, como seres reais que apareciam nas manhãs de domingo da quinquagésima e se sumiam nas tardes da quarta-feira de cinzas misteriosamente. Para mim eles eram eternamente assim, burlescos, guiselharites, coloridos, engraçados" (Arruar, p. 48).
Elemento de superlativa importância na caracterização de um
determinado grau de desenvolvimento, indicador da complexidade que pode assumir
as relações sociais é sem dúvida o sistema de transporte.
Dentre os meios de transporte que proporcionavam a locomoção dos
moradores do Recife antigo está o "bonde de burros", objeto do
humor com que Mário Sette os descreve, referindo-se ao fato de pararem
à porta de passageiros que tinham mais prestígio e até esperarem
que uma ou outra sinhá terminasse os últimos retoques da toalete.
Quanto aos homens, representava para eles um desafio saltar do bonde em movimento,
uma vez que aguardar que parassem "era coisa para velhos".
Já por volta de 1904 os transportes motorizados impunham um novo ritmo
à cidade:
"Pouco importa que nos situemos na Praça da Independência, estuante de transeuntes, ameaçadora de caminhões e limusines, barulhante de bondes e pregões, ou no Pátio de São José de Ribamar, com sua quietude, seu templo dos pescadores, sua gente cujas cabeças curiosas golfam dos postigos das casas térreas de feição primitiva". (Arruar, p. 57).
Com um sexto sentido para detectar aquilo que representa a carnadura e a alma de uma cidade, poeticamente olhada, assim e que o autor de Arruar fala do bairro de São José:"Assim como há os pátios e as ruas para se nos tornarem indefiníveis no que nos comunicam e nos confiam, há, igualmente, os becos, misteriosos, sombrios, maldosos, e o cais com a sua poesia intraduzível e incontável". (Arruar, p.57).
Um verdadeiro amante do Recife, já não digo Recife antigo, que o é da nossa perspectiva de oitenta anos mais tarde, mas do Recife jovem (sem considerar a data de sua fundação), não poderia ficar indiferente à personalidade aquática, fluvial de uma cidade que tem no rio mais do que um cartão de visita: o rio é uma presença familiar, ancestral, cotidiana e tranquila (agora já profeticamente ameaçadora), a receber tratamento poético como no seguinte trecho de Arruar:"Não se precisa lembrar que na fisionomia do Recife o rio predomina, porque ele está a se nos proporcionar a cada volta do percurso: numa rua que o contorna, noutra que a ele vai ter, numa janela com sotéia que o sobrepuja; numa ponte que o galga ou numa amurada que o contém". (p.57).
O dinamismo que dá vivacidade à descrição expressa-se no uso abundante de verbos, como na caracterização dos "brabos", tipos que "foram muito do Recife de ontem", arruaceiros que viviam puxando briga à toa por terem figurões políticos que os acobertavam:"O barulho tomava proporções terríveis. As facas riscavam os ares e mergulhavam nas barrigas. Os porretes faziam desenhos nos ares e colidiam com os quengos dos adversários. Casas fechando-se, gente correndo, meninos chorando, feridos agonizando". (Maxambombas e Maracatus, p.86).
Na descrição de certos tipos, como por exemplo, de Oscar Gomes, bilheteiro do Teatro Santa Isabel, os adjetivos também adquirem dinamicidade, contrariando o caráter de estaticidade, próprio dessa categoria gramatical:
"Substituiu-o Oscar Gomes, anguloso, queixudo, magro, narigudo, sardento, míope, uma porção de coisas esquisitas para envolver um espírito todo imbuído dos assuntos teatrais, maníaco mesmo pelo palco, às voltas com o empresário Juca de Carvalho a vinda de boas companhias ao Recife". (Idem. p. 98).
Além da incursão pelo campo da ficção, com SENHORA DE ENGENHO e SEU CANDINHO DA FARMÁCIA, há também o conhecido TERRA PERNAMBUCANA, importante contribuição para o conhecimento histórico de Olinda e Recife. Mas destes falarei em outra ocasião. Por hoje e com estas breves considerações, quero tão somente registrar o sinal de minha homenagem a esse autor que como nenhum outro, soube fazer o inventário proustiano de sua cidade, captando o espírito de ruas, becos, pátios, gente, acontecimentos, enfim tudo aquilo que pode ter sabor de recifencidade.
(1) Arruar - historia Pitoresca do Recife Antigo.
Livraria Editora da Casa do Estudante do Brasil – 2a edição.
1948.
(2) Maxambombas e Maracatus. Secretaria de Educação
e Cultural-Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981.
Fonte: DANTAS, Maria da Paz Ribeiro. Mário Sette e o Recife
Antigo. Artigos vencedores do Concurso Mário Sette de Reportagem
FUNDARPE. Publicado no Suplemento Cultural do Diário Oficial. Recife-PE:
1986.