Carteira de identidade.
Exemplo raro de “escritor província”, que resistiu à sedução das “cortes literárias”
(...) o que caracterizava a obra ficcional de Mário Sette, tornando-a inconfundível, era a sua suavidade com que sabia amar sua terra e sua gente e “seu lirismo ingênuo”
Olinda, uma das cidades que inspirou Mário Sette, em ilustração do início do século XX.
(...) é necessário que se diga que é profundamente injusta a omissão que se faz de seu nome como pioneiro da literatura de ficção ligada ao ciclo da cana-de-açúcar.
Talvez passe um tanto despercebida – a não ser em Pernambuco –
a passagem, a 19 de abril deste ano, do centenário de um escritor dos mais
representativos do Nordeste do Brasil e da fase pré-modernista da literatura
brasileira, o ficcionista e cronista Mário Sette.
Consta de sua ficha biográfica que ele iniciou sua atividade jornalística
em 1909, assinando duas secções em jornais recifenses, “Registrando”e
“Cinema”. E sua atividade literária em 1916, com a publicação
do livro de contos AO CLARÃO DOS OBUSES, narrativas curiosamente inspiradas
em episódios da I Guerra Mundial.
Voltou-se, em seguida, para a paisagem nativa, que marcaria toda a sua produção
de ficcionista e de cronista. Ele mesmo conta, em suas MEMÓRIAS ÍNTIMAS:
“Aspectos e figuras da vida nacional, paisagens de Olinda e de Caruaru,
por serem os mais familiares aos seus olhos, cor e aroma de nossas coisas, iriam
constituir os cenários dos contos de ROSAS E ESPINHOS, livro aparecido
em 1918”. Daí por diante publicou o romance SENHORA DE ENGENHO e
a novela OUTROS OLHOS (1921), o romance O PALANQUIM DOURADO e os contos de QUEM
VÊ CARAS (1922), os romances A FILHA DE DONA SINHÁ(1922) e O VIGIA
DA CASA GRANDE (1924) e AS CONTAS DO TERÇO (1929), as novelas de A MULHER
DO MEU AMIGO e o romance SEU CANDINHO DA FARMÁCIA (1933), o romance OS
AZEVEDOS DO POÇO (1938) – e dois volumes de que não pude precisar
o ano de publicação, as novelas de JOÃO IGNÁCIO e os contos
de SOMBRAS DE BARAÚNAS.
A partir de 1940 – segundo seu próprio depoimento – foi trocando
a literatura de pura ficção pela reconstituição histórica
de paisagens, costumes, episódios e figuras humanas de sua terra. E publicou
ANQUINHAS E BERNARDAS (1940), BARCAS DE VAPOR (1943) e ONDE OS AVÓS
PASSARAM (1945), ARRUAR (1948) e MAXAMBOMBAS E MARACATUS, sem data. Sua bibliografia
registra ainda as parábolas infantis VELHOS AZULEJOS (1924) e os contos
cívicos TERRA PERNAMBUCANA e BRASIL MINHA, TERRA.
Apaixonado pela paisagem geográfica e humana do Nordeste, principalmente
de seu Pernambuco e, mais especificamente, de Recife, Olinda e Caruaru, Mário
Sette soube descrever com muita sensibilidade, em seus livros de crônicas
e evocações, as feições regionais das procissões
e das novenas. Os pregões. Os lampiões de gás, os bondes
de burro e os carros de bois. Os chafarizes e as casas de banhos. Os jogos de
prendas, as serenatas e as bandas de música. Os pastoris, os frevos e os
maracatus.
Exemplo raro de “escritor província”, que resistiu à
sedução das “cortes literárias”, dele escreveu
Hermann Lima ”…metido, teimosamente, a existência toda, no seu
Recife, que ele amava com um amor quase físico, de tão intenso e
inalterável, em vão lhe acenaram com a possibilidade de uma transferência
para o Rio… Pôde assim dedicar-se de corpo e alma a uma obra de expressão
regional quase sem paralelo em nossa literatura, por isso que, exclusivamente,
integralmente, da terra pernambucana, quando não, em especial, do Recife”.
Isso não o impediu de se tornar conhecido dos meios intelectuais e do
público ledor de todas as partes do Brasil em seu tempo. Contou, desde
logo, com o apoio de Monteiro lobato, que editou vários de seus livros
e acolheu suas colaborações na revista do Brasil, de 1921 a 1924.
E com o de Alvaro Moreyra, que publicou em primeira mão alguns de seus
trabalhos na revista Ilustração Brasileira, em 1926.
Parece interessante saber de que forma os críticos e outros intelectuais
de sua época situaram e definiram sua obra de ficção. Sobre
SENHORA DE ENGENHO há uma crítica de Monteiro lobato, publicada
no número de abril da revista do Brasil, em que o autor de Urupês
escrevia que o romance era bom e seria ótimo se Mário Sette “o
apurasse melhor na parte técnica da construção e no estilo”.
Mas que bastava o tipo de Maria Betânia (uma das personagens centrais
do livro) para colocar a obra entre as melhores “que nos tem dado o Norte
ultimamente”.
Na mesma revista, em maio de 1923, noticiava-se o aparecimento do romance histórico
O PALANQUIM DOURADO, com estas palavras: “…neste trabalho, mais
talvez que em qualquer outro, revela ( o autor), um meticuloso apuro da forma,
tanto no conjunto, para o efeito geral, como nos pormenores que são tratados
com muita finura”.
Sob outro ângulo, o crítico Luiz Delgado – na mesma revista
número de junho 1924 – analisava o romance A FILHA DE DONA SINHÁ,
salientando que o que caracterizava a obra ficcional de Mário Sette,
tornando-a inconfundível, era a sua suavidade com que sabia amar sua
terra e sua gente e “seu lirismo ingênuo”.
Esse ingênuo lirismo - que o fazia acreditar, por exemplo, nas virtudes
rurais e na corrupção dos grandes centros urbanos – seria
notado também por Lima Barreto, a propósito de SENHORA DE ENGENHO:
“não há no autor nenhum arroubo, nenhuma abertura para o
Mistério da Vida e o Infinito do Universo, mas há, em compensação,
uma grande fidelidade na reprodução do que observa…Fico
a pensar em Pernambuco…tudo é feliz, mesmo a linda Maria Betânia”
– personagem docemente resignada na frustração de seu amor.
Essa Maria Betânia, símbolo da literatura ingênua e doce
de Mário Sette e personagem pela qual se apaixonaram muitos leitores,
foi discutida, na época pelos dois Gilbertos ( o Amado e o Freyre), e
até pelo nosso Cornélio Pires – como contaria seu criador
artigo publicado na imprensa de São Paulo a 4 de março de 1936.
Na possível revisão das críticas da época poderia
dizer-se que é de se estranhar a observação de Lobato sobre
SENHORA DE ENGENHO, referindo-se à necessidade de que teria o autor de
“melhorar a parte técnica da construção e do estilo”,
pois trata-se de romance muito bem construído e a linguagem do autor
( como nas suas demais obras) é desenvolta e fluente, a despeito da farta
adjetivação.
Se se pode destacar uma aspecto negativo mais grave na obra de ficção
de Mário Sette – mesmo que nos coloquemos dentro dos parâmetros
literários da época – é o tom pouco convincente de
alguns diálogos, em que certos personagens se entregam a longas dissertações
moralizantes a propósito de problemas nacionais ou regionais.
Talvez não se possa concordar coma opinião de Hermann Lima, de
que Mário Sette é tão seguro na observação
dos hábitos e costumes quanto na análise psicológica de
seus personagens. Na verdade, não há em seus romances figuras
cuja psicologia seja aprofundada, sendo de resto evidente que em toda sua obra
ficcional a descrição de costumes prepondera largamente sobre
o estudo das personalidades.
Bem depois de SENHORA DE ENGENHO Sette publicaria OS AZEVEDOS DO POÇO
(1938) , definido por ele próprio como “ao mesmo tempo obra de
ficção autobiográfica e de reconstituição
de uma época”.não teve o sucesso de crítica e de
público das primeiras obras do autor. Talvez porque, nessa época,
já estivessem marginalizados os autores pré-modernistas como ele
e talvez, principalmente, porque novos escritores se haviam imposto vitoriosamente
na área da ficção nordestina. Mas, curiosamente –
embora esse romance não mostre a composição harmoniosa
de SENHORA DE ENGENHO ou de A FILHA DE DONA SINHÁ – é livro
mais elaborado e mais denso que os primeiros romances do autor, com uma linguagem
mais despojada da abundante adjetivação de seus primeiros trabalhos
e sem os diálogos convencionais de suas obras anteriores, como se o autor
por fim se desse conta de que uma nova sensibilidade impunha novas posturas
no campo da ficção nacional.
Mas neste momento em que passa o centenário de Mário Sette é
necessário que se diga que é profundamente injusta a omissão
que se faz de seu nome como pioneiro da literatura de ficção ligada
ao ciclo da cana-de-açúcar. Ele próprio reclamou –
com razão e com modéstia-, em suas MEMÓRIAS ÍNTIMAS,
contra essa injustiça, escrevendo: “Fiquei definido como o autor
de SENHORA DE ENGENHO e a obra, na época, constituiu-se um marco pioneiro
de uma motivação mais tarde utilizada por outros escritores, com
mais mérito, é certo. O primeiro livro, no gênero, do ciclo
da cana-de-açúcar”.
Essa constatação, de resto, já fora feita pelo crítico
Oscar Mendes, ao lembrar que só seis ou sete anos depois o ambiente e
a atmosfera característicos da região canavieira seriam abordados
por José Américo de Almeida em A Bagaceira. A que se poderia acrescentar
que só 11 anos mais tarde se iniciaria a publicação do
pungente painel de José Lins do Rego.
Agripino Grieco aproximou, com acerto, Mário Sette de Júlio Diniz,
observando que, compondo SENHORA DE ENGENHO, ele seria uma espécie de
autor da Morgadinha dos Canaviais de Pernambuco. Até pela doçura
e pela ingenuidade de que se revestem seus livros e os do escritor português.
Poderá dizer-se que Mário Sette poetizava o velho engenho açucareiro
do Nordeste e suas figuras humanas. Não que deformasse o teor da vida
que fluía nos quadros da tradicional moldura econômico-social nordestina.
Não via, talvez, o que ela encerrava de amargo ou injusto, as carências
e misérias que medravam à sua sombra. Sua visão era de
quem se conformasse com um tipo de sociedade dentro da qual os trabalhadores
do eito e da criadagem da casa-grande recebessem seu quinhão de felicidade
das mãos honestas e magnânimas dos patriarcas...
Mas essa mesma postura do autor- refletindo a sensibilidade da época-
não deixa de enriquecer, como documento, o conhecimento do ciclo da cana
em sua região. O crítico já citado mostrou que os costumes
e até os modismos sintáticos regionais dos matutos aparecem na
obra de Mário Sette, a ponto de um estudioso da linguagem popular do
Nordeste, Mário Marroquim, haver citado frases de personagens de O VIGIA
DA CASA GRANDE ao lado de outras, de personagens de autores que se notabilizaram
mais tarde no uso de uma sintaxe mais afeiçoada ao falar do povo nordestino,
José Américo, Jorge de Lima e José Lins do Rego.
Ernani da Silva Bruno é autor de História e Tradições da Cidade de São Paulo.
Fonte: Recife: Jornal do Comércio, 1986.