2ª edição, 1984
As figuras de Candinho Tamarindo, Amparo, José da Penha, Anésio, Dona Xandu, Maria Joana, não são só características da vida provinciana do velho Recife do início do século, mas, são também pólos centrais de análises sociais, humanas e folclóricas.
Bairro de São José, no Recife
Do mesmo jeito que Balzac e Molière fixaram a avareza em Monsieur Grandet e Harpagon, respectivamente, ou que Shakespeare deixara a cargo de Yago simbolizar a perfídia, Mário vai-se servir do velho farmacêutico Candinho – mas também de suas amantes, de seus amigos e até de seus eventuais fregueses – para nos mostrar, com o bairro recifense de São José servindo de pano de fundo, os estragos da maledicência, que eles tão bem encarnam.
Altar-mor da Igreja de São Pedro
Que escritor revelará, igualmente, pela sua cidade, encantamento maior que aquele que transparece de longa descrição do vetusto bairro de São José em que Mário Sette nos mostra dois namorados que, andando lado a lado, vão, noite após noite, ao sair do trabalho.
Movimento nas ruas do Recife no início do século XX.
O momento alto, entretanto desse magnífico capítulo de romance está na descrição que nos é feita de uma explosão de "frevo" durante o desfile do Vassourinhas, o velho e tradicional clube carnavalesco.
Igreja de São Pedro dos Clérigos
O que Mário quer fixar é a coletividade que rodeia o farmacêutico e lhe saboreia a maldade, com a qual logo passa a compactuar.
(...) há de parecer estranho que pelas páginas do romance se espraie um grande amor pelo Recife quando, segundo o próprio romancista, trata-se de cidade onde tão fortemente prospera a seara dos maus.
A tribuna de Amparo
Acredito, assim, não ter sido outra a intenção do escritor, senão a de significativamente marcar os envolvidos na trama mesquinha.
E chega então o momento em que o romance atinge a dimensões inesperadas quando são postos de lado o despeito perverso e a lubricidade de "seu" Candinho, a ambição desligada de vínculos morais de D. Xandu, a maledicência geral e traiçoeira de toda a comparsaria que os cerca (...)
Mário no gabinete de trabalho em sua residência (1946)
Mário Sette é um nome respeitado na literatura brasileira, onde conseguiu impor um estilo novo dentro das modernas perspectivas literárias das quatro primeiras décadas deste século. Um escritor (recifense, aliás) que conseguiu às custas de uma escola literária toda sua, principalmente em se tratando de romances, transpor as fronteiras da província para se projetar com brilhantismo em todo o território nacional.
Ai, estão, entretanto, os seus clássicos romances, SENHORA DE ENGENHO, OS AZEVEDOS DO POÇO, A FILHA DE DONA SINHÁ, O VIGIA DA CASA GRANDE, AS CONTAS DO TERÇO, considerados hoje obras raras, havendo o primeiro e o segundo penetrado até na música popular brasileira, no trabalho do compositor Capiba, e no folclore recifense.
Mário Sette além de vigoroso romancista foi também um inconfundível
cronista da história, e muitos dos seus livros ainda são amplamente
consultados, comentados e reeditados com sucesso. A Fundação de
Cultura da Cidade do Recife já fez novas edições das seguintes
obras suas, que continuam com boa aceitação nas livrarias do país:
TERRA PERNAMBUCANA, MAXAMBOMBAS E MARACATUS e MEMÓRIAS ÍNTIMAS.
Parte-se agora para a segunda edição atualizada do SEU CANDINHO
DA FARMÁCIA publicado pela primeira vez em 1933. Foi o seu último
romance. Esta obra e considerada como o mais sério e profundo estudo feito
sobre os hábitos, vida, costumes e tradições do Recife na
primeira metade do século. Basta que se esclareça que o romance
desenrola-se totalmente no histórico bairro de São José e
põe em relevo suas velhas ruas, praças e igrejas – algumas
hoje desaparecidas - como centro da vida da classe media da Capital de Pernambuco
durante mais de três séculos.
As descrições, que Mário Sette faz dos velhos carnavais do
Recife, donde procedem estudos psicológicos e sociais do frevo, do maracatu
e de outros festejos populares; as recordações da Semana Santa,
tudo é registrado pelo autor com análises oportunas que atraem e
documentam um passado densamente humano e social.
Afora o excelente desenvolver do entrecho literário de estilo delicioso
e de pura expressão vernacular, o livro atrai e educa, pois nele o autor
focaliza, por exemplo, a exploração em romance do uso de tóxicos
pela mocidade.
As figuras de Candinho Tamarindo, Amparo, José da Penha, Anésio,
Dona Xandu, Maria Joana, não são só características
da vida provinciana do velho Recife do início do século, mas, são
também pólos centrais de análises sociais, humanas e folclóricas.
O livro que na sua primeira edição se constitui hoje em raridade
bibliográfica, está sendo reeditado com moderna apresentação
gráfica e ortografia atualizada.
(...).
Fonte: Nota do Editor Cussy de Almeida, da reedição de SETTE, Mário. Seu Candinho da Farmácia. Coleção Recife. Vol. XXXIII. Recife: Prefeitura da cidade do Recife, 1984.
Acredito contrariar todas as opiniões estabelecidas ao afirmar que o romance SEU CANDINHO DA FARMÁCIA, do pernambucano Mário Sette, é, antes de tudo, um estudo de caráter, e não, como sempre se disse, um típico romance de costumes recifenses.
Do mesmo jeito que Balzac e Molière fixaram a avareza em Monsieur Grandet
e Harpagon, respectivamente, ou que Shakespeare deixara a cargo de Yago simbolizar
a perfídia, Mário vai-se servir do velho farmacêutico Candinho
– mas também de suas amantes, de seus amigos e até de seus
eventuais fregueses – para nos mostrar, com o bairro recifense de São
José servindo de pano de fundo, os estragos da maledicência, que
eles tão bem encarnam.
Mas não se trata, assim, da análise desse defeito de caráter
em um indivíduo somente, malgrado o relevo da figura de Candinho, mas
em toda uma coletividade. Na quase totalidade dos habitantes de um bairro, se
não, mesmo, em quase uma cidade inteira: o Recife.
Um estudo, pois, de psicologia coletiva. Da psicologia recifense em determinado
período (a década de 20) antes que o evolver na mentalidade recifense,
por força do trabalho esclarecedor das Universidades, dos modernos meios
de comunicação de massa e da própria transformação
do Recife em grande cidade moderna impusesse uma quase geral repulsa a inúmeros
preconceitos (sobretudo os de cor e sexo) e, consequentemente a muitos vezos
que marcavam provincianamente o caráter de nossa cidade.
Todo o encantamento do escritor vai para a cidade. Para o Recife cujas ruas,
praças e becos descreve com tanta ternura. E para o Recife guarda ele
as melhores tintas de sua palheta.
Já no primeiro capítulo do romance, a paisagem recifense começa
a se fazer presente. É quando José da Penha leva até a
porta o amigo Benício que se despede após a visita em que se demorara
a conversar até que o toque de silêncio no quartel das Cinco Pontas,
ali perto o alertasse para que a noite tinha avançado e as dez horas
tinha chegado.
José da Penha vem, então, até a calçada e,enquanto
Benício se distancia, ele se deixa envolver pela solidão e pela
melancolia do lugar:
“Quieto e vazio o pátio de São Pedro. Meia luz de lampiões embaciados e distantes. Um ar de uma outra época, de uma outra gente. Silêncio e abandono, de sono, de timidez, de recato. Um quê de estranho, de sobrenatural naquelas casinhas térreas aconchegantes como aves que vêm dormir num só poleiro; naqueles sobrados esguios, lembrando sombras de coisas mortas; na igreja, presidindo o largo, numa silhueta que mal deixava divisar a beleza da fachada; nos dois becos laterais que se alongavam numa melancolia de trechos desertos...”
E numa chave de ouro para esse capítulo, o escritor, numa imagem
bem evocativa do Recife de ontem, capaz de despertar saudade em eventual
leitor de mais idade, faz surgir das sombras e logo nelas se perder.
“Uma preta, de tabuleiro na cabeça, xale nos ombros, com seu nasalado pregão: - Eh! Munguzá quentinho!”
Que escritor revelará, igualmente, pela sua cidade, encantamento maior que aquele que transparece de longa descrição do vetusto bairro de São José em que Mário Sette nos mostra dois namorados que, andando lado a lado, vão, noite após noite, ao sair do trabalho, tomando o caminho de casa:
“Iam por aquelas ruas quietas, tão suas conhecidas, umas na garridice dos melhoramentos municipais, alargadas, arborizadas com lâmpadas de eletricidade, outras angustiadas de espaço, esconsas, de pedras desavindas, de passeios em escadinhas, lampião a gás, sobradões que pareciam cochilar de velhice uns se encostando nos outros... De quando em quando uma igreja caiada de amarelo ou de branco, de torres desbotadas pelos aguaceiros, de paredes descascadas pelo sol, inexpressivas de arte, olvidadas de trato, ingênuas de interiores, com vulgaridade das coisas que sobejam”. (pág.142)
Mas não fica somente aí, adstrita unicamente ao Bairro
de São José, a amorosa descrição do Recife.
Todo um capítulo (o XIV) saindo da pintura das ruas e becos de
São José é reservado a uma excursão de “seu”
Candinho e de sua amásia D. Xandu, às praias da zona norte
da cidade. É uma tarde de domingo. E à medida que o carro
avança, Mário nos põe diante dos olhos, seguidamente,
uma tarde ardente de luz e calor, com o sol “ameaçando
incendiar a verdura sombria dos mangues”, a que se segue, logo
que as águas do oceano se tornando “baças”,
a primeira luz de querosene treme em um mocambo. O retorno ao Recife se
dando enquanto os coqueirais das parias “na opacidade do anoitecer
sem crepúsculo pareciam estar rinçando as suas palmas”
(pág.153).
O Recife é, pois, o regaço ameno que, sem distinguir os bons dos
maus, envolve a todos estimulando-lhes o gosto de viver. Outra coisa será
o uso que façam os recifenses, em suas existências individuais,
dos dons magníficos da natureza tropical...
As primeiras páginas do romance nos põem diante de uma aconchegante
e terna cena da vida domestica de Jose da Penha, jovem comerciante e um dos
futuros heróis vencidos na suja trama que começa a ser tecida.
E das palavras do longo diálogo que ele mantém com sua mulher, D. Genoveva,
o romancista se esmera em deixar transparecer a retidão do seu espírito
e a sua bondade pessoal.
E como é próprio dos justos pintar com tintas exatas as manifestações
do mal, mesmo buscando explicar os erros e defeitos de seu padrinho, pai de
criação e pretenso protetor – assunto da sua conversa com
a esposa – José da Penha vai fazendo avultar no espírito
do leitor o sentimento da baixeza do caráter e da inata, embora disfarçada,
perversidade desse padrinho, que outro não é senão o velho
Candido Tamarindo que se aposentara dos negócios e lhe vendera a farmácia
em que tinha feito fortuna.
Figura central do romance tem caráter complexo o farmacêutico Candinho.
Nele se associam, em meio a inúmeros outros defeitos, coisas como
o pavor da velhice – que o leva a abrir nova farmácia depois de
haver vendido, para descansar em justo ócio, aquela em que fizera nome
e dinheiro – e a vaidade de mostrar-se ainda capaz de levar a bom termo
novo empreendimento comercial. Também o aferrotoa, a essa altura, a inveja
do sucesso que parecia coroar a carreira do seu afilhado e sucessor José
da Penha, a quem vendera por bom preço o negócio. Inveja que,
com o correr do tempo, haverá de se transformar em gratuito ódio.
E tudo isso apoiado na técnica vulgar e mesquinha da difusão de
mentiras buscando sempre enodoar a reputação do sobrinho e afilhado.
Essa maledicência aniquiladora ele a exercera tenaz e friamente. Com uma
crueldade de espantar, em homem que se pretende virtuoso. Frequentador assíduo
de missas dominicais.
Pois cruamente, sem titubear um instante, "seu" Candinho destruíra
a vida dos seres que lhe deviam ser caros como o afilhado José da Penha
e o "neto" Anésio. E até Amparo, moça cuja vida
toca a do jovem Anésio, e, por isso, arrastada no torvelinho dos sofrimentos
que a perversidade do velho farmacêutico desencadeia.
A primeira surpresa vem ao leitor através da insidiosa insinuação
feita por Candinho na loja do Gabela, onde entrara de visita:
"- ...outro que anda ruim é o senhor meu afilhado
...
- O que! O José da Penha! Deu também para isso? ... Com fama de
bem casado!"
E Candinho, aproveitando a confusão havida no diálogo, pois falava-se em comerciantes que se perdiam por gastos excessivos com mulheres, deixa em suspenso o esclarecimento que se impunha e acrescenta:
"- Sei lá, sei lá. O que sei e que a casa vai mal."
Atinge ele, assim, duplamente, o afilhado tão bem casado, pespegando-lhe
injusta fama, de conquistador barato e levantando dúvidas sobre o bom
estado dos seus negócios comerciais. Dúvidas que, bem sabia, logo
iriam espalhar-se pela cidade.
Até mesmo a generosidade de José da Penha, que fizera uma diferença
no preço de um medicamento, recebe essa interpretação venenosa
da parte de Candinho:
"- Ouviu? Meu afilhado fazendo abatimento a esse cobrador de uma empresa rica! É pena... é pena... uma farmácia tão acreditada ter de fechar em breve! Tenho sabido de tantas coisinhas..."
Mas isso é apenas o início dessas hostilidades unilaterais que irão num crescendo dramático até que vidas sejam praticamente aniquiladas pela inconsciência do velho, mas doentiamente vaidoso e terrivelmente insensível farmacêutico.
O capítulo IV de SEU CANDINHO DA FARMÁCIA ainda é uma das
melhores coisas já escritas sobre o carnaval recifense. Carnaval que
Mário Sette apanha desde os primeiros "frissons" na alma pernambucana
que começa a se agitar ante a perspectiva da grande festa. É quando
no seio das famílias começam as escolhas dos modelos das fantasias,
a que se seguem as idas ao comércio (na época, ainda um acontecimento!)
para compra dos tecidos e apetrechos de toda sorte que materializarão
o "motivo" desejado. E os ensaios dos clubes que fazem desfiles preparatórios
pelas ruas do bairro começam a aquecer os corpos e as almas para as horas
plenas de folgança que se aproximam.
O momento alto, entretanto desse magnífico capítulo de romance
está na descrição que nos é feita de uma explosão
de "frevo" durante o desfile do Vassourinhas, o velho e tradicional
clube carnavalesco. É a mais fiel e ao mesmo tempo a mais rica, literariamente
falando, descrição que já se fez dessa explosão
de movimentos ritmados que conduz a um quase êxtase as almas dos pernambucanos.
E que se completa, aliás, no capítulo seguinte com as considerações
que na festinha familiar em casa de José da Penha faz o carioca Caio
Curvelo sobre o passo recifense.
Mas a grande "função" do carnaval no romance vai ser
a de propiciar o verdadeiro início do romance de Anésio e Amparo.
É no encontro de Lenhadores e de Toureiros, dois grandes clubes carnavalescos
do velho Recife, em plena terça-feira de carnaval, na Rua Nova e em meio
a massa humana formidável que tenta passar pela ponte da Boa Vista, que
Anésio e Amparo tem a mutua revelação da "presença"
de seus corpos:
"Ele e Amparo se viram comprimidos, arrastados, impelidos, e numa defesa mútua, instintiva, se abraçaram. Sentiram um contato extremo de corpos, de rostos, de mãos. E, assim, contagiados entraram também na 'onda' ". (pag. 59).
E essa "revelacão" ainda será completada no baile daquela noite de carnaval em que Anésio terá nos braços.
"...ágil, flexuosa, risonha, num apertar de dedos, numa vizinhança de faces, num fremir de bustos, a Amparo macia nos volteios, morena na pele, toda cheirosa a 'Vlan' " ...
E essa referência ao cheiro do lança-perfume famoso, tão
conhecido dos foliões de outrora, há de ter permitido aos leitores
da primeira edição do romance, melhor que qualquer outra coisa,
a caracterização sensorial do instante vivido pelo personagem.
Embora a confissão do mútuo interesse se venha a surgir mais
tarde, na festa do término do curso de preparatórios de Anésio
("- Tem tanto interesse assim por minha saúde? - Tenho"),
aí, nesse contato de corpos, em pleno domínio da folia, é que começaria
a grande paixão que, marcada pela adversidade dos egoísmos
adultos, atravessará o livro e lhe dará doloroso desfecho.
Mário Sette poderia ter-se limitado à analise das devastações
morais que a inveja e o despeito operam no campo devidamente isolado da alma
do velho Cândido Lagostim Tamarindo ou, mesmo, à apresentação
dos danos que tais deformações do espírito podem causar
no seio do seu ambiente familiar.
Mas outro era o intento do escritor. Como se quisesse – fiel ao
velho preceito romano do "ridendo castigat mores" –
invectivar um mau vezo de espírito muito difundido entre a gente
do seu burgo, o que Mário busca ilustrar é a maledicência
"em ação". O que Mário quer fixar é a coletividade
que rodeia o farmacêutico e lhe saboreia a maldade, com a qual logo
passa a compactuar. Essa recepção prazerosa da peçonha
é posta em relevo em vários momentos do romance e o escritor se
mostra exímio na composição de diálogos, cheios
de flagrante, através dos quais caminha, vil e traiçoeira,
a maldade do farmacêutico, mas também a daqueles que, em
contacto direto ou mesmo distante, se prontificam a dar andamento às
suas perversas insinuações.
Perfeita como exemplo do modo como e essa insinuação levada adiante,
sob as aparências hipócritas de censura a erros e sujeiras alheias,
e aquela conversa entre Candinho e seu barbeiro (cap. IX, pags. 104/5) em certa
manhã cinzenta. O amor nascente de Anésio e de Amparo é
apresentado aí em termos tais que, não fosse a insensibilidade
moral de Candinho, haveriam eles de provocar-lhe revolta ao ver arrastada para
o campo da baixeza a pura, e até ingênua, ligação
sentimental do "neto" adolescente:
"Um chamego danado dentro da loja e até na casa da mocinha - diz o barbeiro. Qualquer dia estoura o escândalo. O rapaz é um piratazinho que promete. A tal Amparo vive emproada pensando talvez em casamento. D. Xandu protege tudo fiada no dinheiro do José da Penha. Fecha os olhos; deixa eles dois andarem sozinhos... Quer pegar a isca. Mas depois, há de se arrepender. O Anésio quer é se aproveitar. Casa-se lá com uma pobretona!
E que se veja, ainda, como exemplo da pintura forte do jogo da maledicência, o diálogo, de janela a janela, das duas vizinhas que "passam a limpo" a história dos novos amores de seu Candinho (ele também – e por que não? – alvo do vezo danado) no momento em que este se apresta a substituir a crioula Maria Joana, da Rua das Águas Verdes, por D. Xandu. Anésio que, acompanhado da mãe e da irmã, espera o bonde junto a um poste próximo, ouve toda a conversa entre as linguarudas e, melhor que se fora advertido pelos pais, percebe a gravidade da situação em que se encontra o seu amor.
Ao leitor amante da boa lógica do texto e propenso a esmiuçá-lo
em busca: das suas eventuais grandezas ou fraquezas, há de parecer estranho
que pelas páginas do romance se espraie um grande amor pelo Recife quando,
segundo o próprio romancista, trata-se de cidade onde tão fortemente
prospera a seara dos maus.
Na verdade, se mais atento for, ele descobrirá que, ao lado de tantas
figuras perversas, postas em relevo por um processo de pinçamento
operado em meio a toda uma multidão que enche casas, ruas e praças
da cidade, e mais particularmente de São José (bairro familiar
por excelência da classe média nos anos 20 e 30), há
toda uma imensa massa humana que não é trazida ao primeiro
plano por desnecessária ao desenvolvimento da ação
romanesca e à qual é lícito conceder o "benéfice
du doute" que a põe a salvo da suspeita de envolvimento
na teia pérfida da maledicência.
E em nenhuma página do romance se manifesta melhor, por essa gente, a
simpatia e até mesmo a ternura do autor, do que naquelas que abrigam
as suas grandes explosões de alegria nos dias de carnaval.
Mas a esta altura quero sobre tudo aventar uma teoria que talvez possa ser a
explicação de um certo problema assinalável no romance:
a dos estranhos nomes postos pelo autor em seus personagens.
Chamar-se alguém de Candido Lagostim Tamarindo é algo que viola
as leis da credibilidade. É verdade que as listas de eleitores que publicam
as edições do Diário Oficial apresentam nomes mais estapafúrdios
que esse. Mas a realidade não precisa ser crível. Isso é
problema da ficção. E quando além do Sr. Candido Tamarindo
aparecem a rodeá-lo outros indivíduos que se chamam Timoleão
Garopa, Sertório Madruga, Ricardo Morretes, Ednésio Pontilhão,
Reinaldo Cosmorama, Aníbal Cereja, Benvenuto Capinas, Hertulino Bangue,
Zoraido Pitombo ou Marcolino Tréguas, entre os homens, e Amparo Pedregulho
ou Carminha Vergalho, dentre as mulheres, então as coisas raiam pelo
absurdo (que não convém confundir com o absurdo camusiano, que é
outra coisa!)e exigem uma explicação.
Seria possível que, a Mário Sette, então um experimentado
escritor, escapasse o ridículo da situação? Não
é crível. E aventuro aqui uma hipótese que bem poderá
talvez dar-nos a chave do problema. E que seria a utilização
pelo escritor de um "procédé" encontradiço
no campo da pintura, da escultura e do teatro. Sabem os estudiosos de
História da Arte que uma das coisas que mais intrigavam, por exemplo,
os especialistas da obra de João Francisco Lisboa, o Aleijadinho,
era a expressão fisionômica de traços francamente
caricaturais (e, portanto, risíveis, o que contradiz o clima de
piedade que deveria dominar a cena) dada pelo genial escultor a numerosas
figuras dos Passos da Paixão e que se encontram nos nichos da via
sacra erguidos na rampa que conduz a Igreja do Bom Jesus de Matozinhos.
Hoje chegaram os estudiosos da arte de João Francisco Lisboa à
conclusão de que ele traduzia naqueles narizes desmedidos naqueles olhos
quase fora das órbitas, em todas aquelas fisionomias anormais, a maldade
daqueles indivíduos que se entregavam a hedionda tarefa de matar o Cristo.
Acredito, assim, não ter sido outra a intenção do escritor,
senão a de significativamente marcar os envolvidos na trama mesquinha.
Um pouco assim como os cabeções que certos encenadores enfiam
nos personagens simbólicos (lembro aqui particularmente as recomendações
do próprio Claudel em "Jeanne d'Arc au Bucher") e que permitem
ao espectador, a uma simples olhadela, perceber o caráter da figura,
mais, ou menos, afastado da norma ditada pelo equilíbrio moral e pelo
mediano bom senso).
Mário Sette com a pintura vivaz que nos dá de uma certa maledicência
recifense chama ao primeiro plano um torpe sestro. Mas a sua lucidez de escritor
não lhe permitirá atribuir-lhe toda a responsabilidade da desgraça
dos jovens amantes.
A vulgaridade de D. Xandu, mãe de Amparo, a mediocridade da sua alma,
a baixeza dos seus sentimentos, a sua ambição (estadeadas de permeio
a expressões tolas e chulas), e, sobretudo, a sua incapacidade de compreender
a filha e dar-lhe o apoio de que tanto necessitava, irão também
funcionar como elementos manipuladores da desgraça da moça.
E chega então o momento em que o romance atinge a dimensões inesperadas
quando são postos de lado o despeito perverso e a lubricidade de "seu"
Candinho, a ambição desligada de vínculos morais de D.
Xandu, a maledicência geral e traiçoeira de toda a comparsaria
que os cerca, e, até mesmo, o discreto sofrimento dos bons como José
da Penha, D. Genoveva ou Benício Fraga. Tudo cede lugar para que avulte
somente o drama de Anésio e de Amparo.
Aquele estranhamento geral diante do comportamento da moça vai ter afinal
a sua explicação. O próprio Anésio, depois de um
escândalo no Mercado de São José em que as duas amantes
de "seu" Candinho (uma delas, sua futura sogra) foram às vias
de fato – ocasião em que até o nome de Amparo recebera respingos
de lama - sentira "tornarem-se mais evidentes certos caprichos de gênio
de Amparo", enquanto uma vizinha, a mãe de Luizinha, amiga de Amparo,
igualmente assinalara:
"Aquela menina anda mesmo muito mudada, todos reparam isso. Faz pena, faz pena... Triste e alegre ao mesmo tempo; às vezes, aqui ri-se, e acaba chorando. Depois passa dias e dias sem aparecer, trancada num quarto; só quem esta ficando gira, minha gente!"
E a revelação de tudo vira, brutal, quando, após um certo período de afastamento, sobrevindo o reencontro do jovem par de namorados - que poderia ter sido idílico mas que o comportamento cheio de intencional sensualidade de Amparo, transforma em algo tocado de "estranho mal-estar" – chega a pergunta denunciadora:
"- Você arranja cocaína para mim, Anésio?"
E então que tomamos conhecimento da danação definitiva
de Amparo: a trama perversa da maledicência fizera e fizera bem feito
o seu trabalho.
Amparo estava destruída.
Fonte: Trecho da apresentação de Lucilo Varejão Filho in SETTE, Mário. Seu Candinho da Farmácia. Coleção Romances Urbanos – os velhos mestres do romance pernambucano. Recife: Companhia Editora de Pernambuco – CEPE, 2005.