Meu pai deixou-nos duas obras memorialistas, intituladas “trechos de meu caminho” e "Caminhos de um Coração".
Oscar Maia e Mário Sette, velhos amigos da infância e futuros cunhados (Casa Amarela, 1904)
Meu pai alcançou seu objetivo. Não morreu em nossa saudade. Permanece vivo, atuante, aconselhador, dia a dia mais nítido em nossa lembrança.
Parece que meu pai possuía a intuição egípcia dos tempos faraônicos no desejo de se perpetuar na lembrança de seus descendentes. Em sua maneira simples de ser e de viver, no seu gabinete de trabalho, ele nos legou, ora consciente, ora inconscientemente, como que um museu de verdadeiras relíquias impregnadas de sua presença, de sua criatividade, de seus hábitos, de seu uso pessoal.
Não me refiro apenas a sua numerosa e variada obra literária constituída de cerca de trinta livros e separatas publicados nos gêneros conto, romance, crônica, peça teatral e literatura didática, sem incluir sua colaboração militante nas imprensas pernambucana, brasileira e argentina.
Falavam muito mais dele, num trabalho quase artesanal, os grossos volumes de folhas
de papel em branco onde colava cuidadosa e pacientemente, entremeados por fotografias,
postais, cartões, efemérides assinaladas em papéis de folhinhas,
tudo quanta publicava em jornais e revistas, bem como aquilo que a crítica
se manifestava sobre sua pena de escritor e seus livros. Essa verdadeira preciosidade
de valor tanto estimativo como cultural viu-se quase totalmente destruída
pela grande enchente do Capibaribe em 1975 que me invadiu a casa até ao
nível de um metro de altura. Coube-me a tarefa de tentar reconstituir esses
álbuns-miscelâneas em novos livros, conseguindo apenas salvar os
recortes de papel de imprensa e posteriormente, doando-os ao Pró-memória
do Instituto Joaquim Nabuco.
Meu pai deixou-nos duas obras memorialistas, intituladas “trechos de meu
caminho” e "Caminhos de um Coração". A primeira
são dados autobiográficos, manuscritos em grossos cadernos encartonados,
registrando acontecimentos do seu dia-a-dia, datas de nascimentos e mortes de
entes queridos, fatos de importância local, regional, nacional e até
internacional. "Caminhos de um Coração" é a sua
própria história, seu romance, já em forma literária
e datilografado, enriquecido com farto documentário fotográfico,
tendo sido publicado com o título de MEMÓRIAS ÍNTIMAS (Coleção
Recife).
Para minha sensibilidade de filho que conviveu intimamente com ele até
o último momento do desenlace, muito mais que seus livros, miscelâneas
e memórias escritas, são pedaços relíquias de meu
pai velhinho e lúcido, certos objetos guardo ao alcance do tato de minhas
mãos de cego e que povoaram a mesa, as estantes e as paredes de seu gabinete
de trabalho.
Tenho, por exemplo, sobre minha escrivaninha, uma estátua de bronze numerada,
reprodução de uma peça de arte de museu europeu, presente-gratidão
do povo de Caruaru, em setembro de 1925. Em meu redor, uma efígie de Nossa
Senhora de Lourdes, em metal, que sua mãe, minha vovó Dondon, colocou
em sua mala quando se mudou definitivamente do Rio para o Recife, em setembro
de 1901. E mais, bem guardados, um castão de bengala e um mealheiro, ambos
de prata, de seu tempo de menino, um carimbo que grava seu nome em alto-relevo,
uma pinha de louça para peso sobre papéis, um marcador de livro em marfim
trabalhado, presente de um amigo ganho por seu pai, meu Vovô Sette, em 1896,
um fragmento de granito branco, arestado, onde sua caligrafia gorda escreveu:
"Caruaru-1923" e um santuário envidraçado, habitado por
imagens que pertenceram à minha bisavó paterna, Dindinha Felícia.
Acariciando com as mãos essas “pequeninas-grandes” coisas de
minha veneração, tenho a impressão de estar afagando seus
cabelos brancos, beijando a sua fronte enrugada, sentindo o calor de sua ternura,
escutando sua voz centenária. Meu pai alcançou seu objetivo. Não
morreu em nossa saudade. Permanece vivo, atuante, aconselhador, dia a dia mais
nítido em nossa lembrança.
Consola-nos constatar que essa existência de meu pai não se verifica
apenas conosco, filho, nora, netos, bisnetos e já se projetando sobre trinetos.
Não tem outra explicação a fidelidade de seus leitores a
esgotar as edições póstumas de seus livros e muito especialmente,
a dedicação carinhosa e quase filial de nosso querido amigo, jornalista
Leonardo Dantas Silva, incansável em homenagear a memória de meu
pai, como o faz agora ao publicar mais um livro de sua autoria, esta bonita e
primorosa edição do ANQUINHAS E BERNARDAS, comemorativa ao Centenário
de seu nascimento.
Fonte: Prefácio de Hilton Sette da Edição Comemorativa do Centenário de nascimento de Mário Sette (1986-1987) in SETTE, Mário. Anquinhas e Bernardas. Coleção Pernambucana. 2aFase. VOL. XXXIV. Recife: FUNDARPE, 1987.